Séculos atrás, exploradores partiram rumo ao Atlântico em barcos a vela, equipados apenas com bússolas e sextantes, para colonizar o ‘novo’ mundo. Hoje, o homem pode estar prestes a realizar jornada parecida – agora com mais conhecimento e transmissão pela internet, mas sem perspectiva de retorno. Se uma viagem só de ida para Marte pode parecer pura loucura de ficção científica, há mais de 100 mil ‘loucos’ bem-dispostos inscritos no projeto privado Mars One, que pretende dar início à colonização do planeta vermelho. A uma semana do fim do prazo de inscrições, a CH conversou com uma das porta-vozes da empresa para entender melhor essa aventura de seis bilhões de dólares.
Se tudo correr bem, o primeiro grupo de astronautas deve deixar a Terra em 2022. Mas o projeto chega a Marte bem antes: missões não tripuladas partirão rumo ao planeta a partir de 2016. Elas colocarão satélites de comunicações em órbita e levarão grandes sondas terrestres, que definirão o local do assentamento e realizarão a instalação dos primeiros módulos habitacionais. Quando o grupo de pioneiros chegar, a estrutura estará pronta, com reservas de água e oxigênio. Segundo a empresa, o segundo grupo viajará dois anos depois e assim sucessivamente pelos anos seguintes.
Se você quer estar entre os primeiros colonizadores, melhor se apressar: as inscrições vão até 31 de agosto. É preciso ter ao menos 18 anos, fluência em inglês e enviar currículo, carta de intenção e um vídeo para a Mars One. Entre os mais de cem mil inscritos, há representantes de cerca de 120 países, inclusive vários brasileiros.
Os eleitos passarão por sete anos de treinamento físico, técnico e psicológico antes da partida – tudo transmitido naquele que tem tudo para ser o maior reality show da história planetária. Previsto para estrear em 2014, o programa ajudará a bancar o projeto e mostrará desde a seleção até a viagem e o dia a dia dos colonos em Marte. O resto dos recursos virá de patrocinadores privados e será totalmente investido na viagem, segundo a Mars One, que é uma organização sem fins lucrativos.
Quatro décadas depois de nossa última viagem à Lua e sem planos de qualquer agência espacial para missões humanas em Marte num futuro próximo, a iniciativa privada pode ser responsável pelas primeiras ‘pegadas’ interplanetárias da humanidade – uma grande mudança para a exploração espacial. Por isso, além dos desafios técnicos e humanos, a empreitada levanta novas questões: qual o lugar dos investimentos público e particular no futuro do espaço? Para debater esses e outros pontos, conversamos por e-mail com a indiana Aashima Dogra, divulgadora de ciência e editorial manager da Mars One.
CH On-line: A ideia de deixar nosso mundo para sempre pode parecer loucura para muitos. Você acha que é preciso ser um pouco louco para se candidatar ao Mars One?
Aashima Dogra: Na verdade, não. Pensando bem, toda a exploração e o conhecimento que geramos até hoje culminou nesse desafio. O desejo de explorar é nosso atributo natural, sempre promovemos viagens só de ida para terras longínquas, procurando expandir nossas fronteiras para as futuras gerações. Essa é uma das razões do sucesso de nossa espécie. Chegar a Marte será uma aventura fantástica, o próximo salto da humanidade! Além disso, a conquista pode impulsionar diversas áreas, como reciclagem, energia solar, produção de alimentos e tecnologias médicas. Mas é uma missão para heróis, não para alguém em busca apenas de um pouco de emoção.
E será realmente uma viagem sem retorno, mesmo no futuro?
Sim, hoje é simplesmente impossível retornar. A tecnologia necessária para levar um foguete e o combustível para a volta não existe. A única forma de irmos é numa viagem só de ida. É claro que pesquisadores na Terra, e eventualmente em Marte, seguirão estudando formas de promover uma viagem de volta, esforços nesse sentido já existem. Mas há outros pontos a considerar: será que o corpo dos colonos se readaptaria à gravidade da Terra depois de se adaptar à de Marte? São questões que só serão entendidas depois de estabelecermos uma colônia lá. Por isso, nosso foco é criar um povoamento com pessoas decididas a viver por toda a vida em Marte.
Confira o trailer ‘One Way Astronaut’, vídeo oficial de divulgação do projeto Mars One
Nessa fase de seleção, os candidatos devem enviar um vídeo no qual falam sobre questões pessoais, como seu senso de humor. Por quê?
A ideia do vídeo é fazer o candidato refletir sobre si e nos dar uma ideia de como apresenta seus interesses, paixões. Se essas pessoas estão indo para uma viagem só de ida para Marte, o bom humor é uma parte fundamental da dinâmica da equipe e do sucesso do relacionamento entre pessoas que precisarão viver juntas para sempre.
Nas próximas fases, vocês selecionarão os candidatos até chegar num total entre 28 e 40 em 2015. Como será esse processo?
Eles serão entrevistados por psicólogos para saber se encaixam-se no perfil que estamos buscando. É um processo sigiloso, para evitar, ao máximo, falsos positivos. Depois, haverá testes com tarefas específicas e um levantamento de saúde completo. Os escolhidos passarão por treinamentos em diversas partes do mundo. Durante três meses a cada ano, ficarão isolados em ambientes que simularão Marte. Queremos levá-los a cenários desérticos e a condições de frio extremo. Eles terão que usar trajes espaciais, cuidar de seu suprimento de água, produzir sua própria comida e terão sua comunicação limitada – qualquer mensagem levará de 3 a 20 minutos entre os dois planetas, então só será possível se comunicar por e-mail ou mensagens de texto, de voz ou de vídeo.
O perfil profissional do candidato fará diferença? Vocês estão procurando especificamente por cientistas ou pessoas ligadas a determinadas áreas?
Não estamos procurando um perfil específico. Um biólogo ou engenheiro mecânico não é necessariamente um colono melhor. Os astronautas devem ser inteligentes, criativos, psicologicamente estáveis, capazes de se adaptar e saudáveis. Precisam ter, em especial, um perfil psicológico adequado para conviver com os demais, uma atitude positiva em relação à missão e a capacidade para executar as tarefas. Não haverá retorno, Marte será a casa deles. Por isso, um profundo senso de propósito ajudará a manter sua estabilidade física e psicológica, seu foco enquanto trabalham para o futuro da humanidade.
Todo esse processo de seleção e treinamento será veiculado mundialmente, certo?
Sim, sim. As transmissões começam ainda na fase de seleção, provavelmente no meio de 2014, por canais de TV e pela internet. Vamos selecionar grupos de candidatos de cada área do planeta, dos quais escolheremos um conjunto de cerca de 40 participantes. Desse processo, formaremos times para treinar em simulações do ambiente de Marte. O público vai escolher quem integrará a tripulação e poderá acompanhar o lançamento, a viagem até Marte, os primeiros passos por lá e a vida dos colonos em seu novo lar.
Uma questão delicada para o sucesso da missão é o relacionamento – inclusive pessoal e sexual – entre os membros da missão. Como vocês lidarão com isso?
O primeiro grupo a viajar para Marte será composto por dois homens e duas mulheres, de preferência de continentes diferentes. Não planejamos interferir na dinâmica pessoal e nas decisões íntimas deles. Vamos transmitir toda a experiência como um reality show, mas não estamos interessados em explorar rixas pessoais, encontros sexuais e outras coisas desse tipo, como é comum em programas desse gênero. A missão fala por ela mesma. Nós, assim como todos na Terra, estamos interessados em acompanhar a exploração, o desafio, a descoberta, a humanidade no que ela tem de melhor.
Sobre a viagem em si, como vocês pretendem enviar os colonos até Marte? E como superar o desafio da radiação cósmica, uma vez que um estudo recente registrou altos níveis de incidência durante a viagem da sonda Curiosity?
Temos conversado com a empresa SpaceX para utilização da nave Dragon, mas também estudamos outras possibilidades. Queremos ter pelo menos dois fornecedores para cada componente. Toda a missão está baseada em tecnologias existentes, trabalhamos com um cronograma viável, mas queremos dar suporte ao desenvolvimento tecnológico. Sobre a radiação cósmica, o estudo observou índices de exposição muito grandes por considerar uma viagem de retorno, o que não acontecerá nesse caso. A jornada de 210 dias até Marte vai expor os colonos a radiações abaixo dos valores estipulado pelas agências espaciais para a carreira de astronauta. Na superfície, a atmosfera bloqueia parte da radiação, as áreas habitáveis serão cobertas com solo para maior proteção e os colonos se abrigarão em áreas mais protegidas em momentos de radiação mais intensa.
Falando um pouco da vida dos colonos em Marte: como eles obterão artigos básicos como água, comida, energia e oxigênio?
Bom, eles precisarão produzir tudo isso! A energia será gerada a partir da radiação solar e o próprio sistema de suporte de vida vai usar essa energia para retirar água contida no solo do planeta, por isso é preciso escolher bem o local de assentamento. Temos algumas previsões, mas somente com a sonda que enviaremos será possível definir com precisão. A água será quase totalmente reciclada, uma vez que isso demanda bem menos energia do que sua extração. Ela também será usada para produzir oxigênio. Já a dieta dos colonos será baseada em alimentos frescos produzidos com métodos hidropônicos de alta eficiência, dentro dos próprios módulos, com luzes artificiais e em diversos níveis, sem necessidade do uso do solo e otimizando o espaço necessário.
Ainda sobre o cotidiano no planeta vermelho, sem dúvida há grande expectativa a respeito das pesquisas científicas que podem ser realizadas lá. A missão tem esse objetivo, mesmo com a escolha de uma tripulação não especializada?
Sim, com certeza. Vamos treinar os astronautas durante anos e em cada equipe teremos integrantes capacitados para o uso e reparo de todos os equipamentos, outros receberão treinamento médico ou aprenderão sobre geologia e exobiologia, que estuda a vida fora da Terra, e todos terão boas noções de áreas como psicologia e eletrônica. No futuro, com o aumento da população, novos colonos trarão outras expertises e o treinamento necessário poderá diminuir, não precisará ser tão amplo. Há uma longa lista de questões científicas a serem investigadas em Marte, mas ainda não estamos escolhendo os experimentos, a decisão levará em conta a aptidão e a decisão dos colonos. Nesse ponto, também planejamos trabalhar de forma bem próxima às agências espaciais.
Vocês parecem ter tudo bem planejado, mas uma viagem dessas envolve muitos riscos. O que acontece se tudo der errado? Por exemplo, se os colonos não conseguirem se adaptar à gravidade de Marte ou se uma falha incorrigível colocar suas vida em risco? E se os recursos acabarem quando eles já estiverem em Marte?
Nós estamos preparados para cenários ruins. Nossa intenção não é transmitir para o mundo eventos pessoais. Nesse ponto, fico com as palavras de Bas Lansdorp, cofundador da Mars One: “É claro que existem muitas questões potencialmente problemáticas, mas muitos dos participantes nessa fase já têm noção – e certamente todos os escolhidos para o treinamento terão plena consciência – dos riscos envolvidos numa missão espacial de verdade. E estamos nos preparando para todos os que conseguimos identificar. Por exemplo, haverá suprimentos de emergência para alimentação e reparo de equipamentos. A primeira equipe, que vai lidar com circunstâncias mais desconhecidas, terá quatro unidades de suporte de vida à disposição, sendo que apenas uma seria suficiente. Prevendo um grande grau de redundância para dar mais segurança aos colonos. Sobre a adaptação à gravidade, não acredito que teremos problemas, o homem já esteve na Lua, que tem uma gravidade muito menor, e passa longos períodos no espaço, sem gravidade alguma. Na questão dos recursos, haverá muitas formas de financiamento quando os humanos estiverem em Marte, inclusive pela propriedade intelectual das pesquisas que realizarão por lá.
Você também falou na relação com as agências espaciais de todo o mundo. Como o Mars One interage com elas hoje?
Bem, outro dos cofundadores da Mars One, Arno Wielders, trabalha na Agência Espacial Europeia; nosso diretor médico é pesquisador experiente da agência espacial americana e muitos membros da nossa equipe também têm vínculos com outras agências. Nosso objetivo é trabalhar cada vez mais próximo com essas organizações, em especial nos aspectos relacionados à preparação para a fase em solo marciano de nossa missão.
Nos últimos anos, tem crescido as iniciativas de turismo espacial. Apesar de privada, a proposta da Mars One não se enquadra nessa categoria, certo?
De forma alguma; estamos longe desse modelo. Somos uma organização sem fins lucrativos, não cobramos nada dos colonos. Eles não serão consumidores, mas sim nossos colegas. O projeto tem como objetivo estabelecer uma colônia humana permanente e próspera em Marte. Não queremos obter lucro com os direitos de transmissão, todos os recursos obtidos serão investidos no financiamento da missão.
Mas você acredita que a iniciativa privada tem um papel importante a cumprir para o contínuo desenvolvimento da exploração espacial a partir de agora?
Como diz Lansdorp, cofundador da Mars One, a união do investimento público e privado é o que vai nos permitir chegar a Marte. As tecnologias desenvolvidas pelas agências públicas nas últimas décadas serão fundamentais nessa missão privada. Da forma como projetos e recursos estão distribuídos nesse momento, programas de exploração tripulados são mais fáceis de implementar no ‘espaço privado’, enquanto a pesquisa científica é mais simples de ser realizada por missões com financiamento público. Por isso, acredito que trabalhar juntos é a única forma de avançar.