A cosmologia nunca esteve tão perto de confirmar a existência de um misterioso componente do universo postulado para explicar discrepâncias observacionais: a matéria escura. Embora esse conceito seja aceito pela maioria dos especialistas, alguns deles preferem explicar com hipóteses alternativas os problemas que levaram à sua criação. Com a entrada em operação de novos telescópios, aceleradores de partículas e detectores, os próximos anos podem trazer a aguardada resposta para o mistério.
A foto mostra o aglomerado da Bala, formado pela colisão de dois aglomerados de galáxias ocorrida há 150 milhões de anos. A distorção da luz de galáxias distantes situadas atrás do aglomerado, provocada pelo efeito de lente gravitacional, é um indício da existência de uma grande quantidade de matéria escura (foto: Nasa / CXC / CIA / STSci / Magellan / Univ. do Ariz. / ESO).
A matéria escura é tão enigmática quanto abundante. Observações feitas nas últimas décadas indicavam que havia no universo, além das galáxias e das nuvens de gás que nossos telescópios conseguem ‘ver’, uma estranha forma de matéria, que não interage com a luz e que existe em quantidade muito superior à matéria visível – na proporção de cinco para um, supõe-se. Ninguém sabe ao certo do que ela é feita, mas os cosmólogos conseguem descrever como ela está distribuída e como exerce força gravitacional sobre a matéria que enxergamos.
A idéia de uma “matéria faltante” foi inicialmente sugerida nos anos 1930, quando o suíço Fritz Zwicky (1898-1974) inferiu a massa total de um aglomerado de galáxias a partir do movimento das galáxias que o compõem. O valor não batia com as estimativas feitas a partir do número de galáxias e de seu brilho. Zwicky concluiu que devia haver alguma forma invisível de matéria para manter o aglomerado coeso.
Essa idéia só ganharia força, no entanto, a partir dos anos 1970, quando se constatou que todas as estrelas das galáxias em forma de espiral giravam em velocidade constante ao redor de seu centro. Se não houvesse qualquer outro tipo de matéria presente, seria de se esperar que as estrelas nas bordas da galáxia girassem em velocidade inferior, ao contrário do que indicavam as observações.
Novas linhas de evidência
Nos anos seguintes, novas evidências reforçaram a hipótese de que deveria haver um tipo de matéria não visível abundante no universo. Telescópios de raios-X conseguiram medir a temperatura das nuvens de gás no interior de aglomerados de galáxias, o que permitiria inferir a massa dos aglomerados. Os valores estimados, porém, eram muito maiores do que o da massa observada sob a forma de gás e estrelas.
A imagem acima, obtida em maio deste ano, foi considerada a mais convincente evidência da existência da matéria escura já obtida. A estrutura em forma de anel visível na foto mostra como a luz das galáxias atrás do aglomerado ZwCl0024+1652 foi distorcida devido ao efeito de lente gravitacional (foto: Nasa, ESA, M.J. Jee e H. Ford).
Em meados dos anos 1980, os defensores da matéria escura ganharam outro forte argumento com a utilização do fenômeno de lente gravitacional. Conforme prevê a teoria da relatividade, a deformação do espaço-tempo provocada pela massa dos aglomerados de galáxias distorce a luz de galáxias distantes, situadas atrás deles. A medição dessa deformação permite estimar a massa desses aglomerados. No entanto, o valor obtido mais uma vez não batia com as previsões teóricas a partir da massa observada pela emissão de luz em todos os comprimentos de onda.
E não é tudo. A estimativa da quantidade de núcleos atômicos formados durante o resfriamento e a expansão do universo após uma fase extremamente densa e quente (o Big Bang) corresponde a apenas 20% da matéria observável no universo. Além disso, se só houvesse a matéria visível, seria impossível explicar a estrutura heterogênea em larga escala do universo a partir do estado quase homogêneo em que ele se encontrava, mesmo cerca 400 mil anos após o Big Bang. Já a existência de uma matéria escura que não interagisse com a luz poderia explicar a origem da estrutura observada.
Essas linhas de evidência, obtidas de forma independente, alçaram o modelo da matéria escura à condição de teoria mais bem aceita para explicar a componente dominante das estruturas do universo. “Os anos 1980 foram cruciais pra estabelecer o conceito da matéria escura, mas a cosmologia ainda estava numa época incipiente do ponto de vista observacional”, avalia o cosmólogo Martín Makler, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). “Nos anos 1990, com o nascimento da cosmologia de precisão, começamos a ter medidas em abundância e dados estatísticos muito precisos. Com isso, o paradigma da matéria escura foi sendo estabelecido.”
Modelo alternativo
Apesar das sucessivas evidências em favor da matéria escura, alguns cosmólogos preferem recorrer a outras hipóteses para explicar a suposta “massa faltante”. Uma delas propõe reformular a segunda lei de Newton, que estabelece uma relação entre força e aceleração, para explicar o problema da velocidade de rotação das estrelas em torno do centro das galáxias em espiral. O modelo da dinâmica newtoniana modificada (ou Mond, na sigla em inglês) conquistou adeptos desde que foi proposto, no início dos anos 1980, pelo israelense Mordehai Milgrom.
O cosmólogo americano-israelense Jacob Bekenstein propôs em 2004 uma teoria capaz de conciliar o modelo da dinâmica newtoniana modificada (Mond) com a teoria da relatividade geral (foto: Universidade Hebraica de Jerusalém).
Recentemente, a hipótese voltou a ser discutida, após ser tema de um artigo publicado pela revista Science no início do mês. “O modelo Mond descreveu com sucesso as curvas de rotação de galáxias em espiral”, defende o autor, o cosmólogo Stacy McGaugh, da Universidade de Maryland (EUA). “Caso após caso, o modelo mapeou corretamente a massa observada para a dinâmica observada. Por que existiria tal mapeamento direto entre massa total e visível se a matéria escura de fato dominasse?”
Os críticos ao modelo Mond sempre alegaram que a hipótese era inconciliável com a teoria da relatividade geral. Em 2004, no entanto, o americano-israelense Jacob Bekenstein propôs uma teoria relativística compatível com essa hipótese. Seu modelo é capaz de explicar o fenômeno de lente gravitacional, ao contrário da hipótese Mond – essa era uma das principais críticas a esse modelo.
Ainda assim, aos olhos da corrente majoritária de cosmólogos, a hipótese de Bekenstein ainda não é consistente o bastante para desbancar o paradigma da matéria escura. “Trata-se de uma teoria incompleta, que dá conta de apenas uma das linhas de evidência a favor da existência da matéria escura”, refuta Martín Makler. “Ela resolve razoavelmente bem um dos problemas, mas não consegue explicar questões como a nucleossíntese primordial ou a estrutura em grande escala do universo.”
De qualquer forma, mesmo entre alguns defensores da matéria escura, há um certo desconforto com o modelo atual para explicar o universo. Enquanto evidências convincentes não resolvem o problema, propostas alternativas são bem-vindas. “A existência da matéria escura, por mais bem fundamentada que esteja, ainda não foi confirmada”, lembra Makler. “Enquanto ela não estiver comprovada indiscutivelmente, é sempre bom explorar outras possibilidades.”
O fim está próximo?
Essa batalha teórica pode estar próxima de um fim. Os cosmólogos que defendem o paradigma da matéria escura estão convictos de que ela deve ser detectada nos próximos anos. Muitos apostam suas fichas na teoria da supersimetria, que postula que as partículas fundamentais conhecidas teriam correspondentes supersimétricos ainda não identificados, de massa maior e mais instáveis, que são mais difíceis de serem detectados. Uma dessas partículas simétricas – o neutralino – está entre as mais cotadas para, caso seja detectada, explicar a matéria escura do universo.
A busca por essas partículas já começou. Atualmente, há em funcionamento na Europa e nos Estados Unidos alguns detectores subterrâneos projetados para identificar partículas instáveis de grande massa. Grande esperança é depositada no Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), o maior acelerador de partículas do mundo, a ser inaugurado no ano que vem na Suíça. Espera-se que ele possa comprovar a supersimetria e identificar, ao menos indiretamente, partículas que possam corresponder à matéria escura.
A imagem mostra como deve ser o Grande Telescópio Sinóptico de Monitoramento, a ser construído no Chile a partir de 2010, com o objetivo de detectar com grande precisão o fenômeno de lente gravitacional que a matéria escura provoca sobre a luz de galáxias distantes (foto: LSST).
Além dessas iniciativas, há em projeto novos telescópios que prometem identificar rastros da matéria escura em suas observações. Por volta de 2015, deve entrar em operação o Grande Telescópio Sinóptico de Monitoramento (LSST, na sigla em inglês), projetado para detectar com grande precisão o fenômeno de lente gravitacional que a matéria escura provoca sobre a luz de galáxias distantes. O equipamento será construído no topo de Cerro Pachón, um pico de 2.682 metros de altura no Chile.
Em uma localidade próxima, deve entrar em funcionamento antes disso um outro projeto, chamado Sondagem da Energia Escura (DES, na sigla em inglês). Embora a iniciativa seja voltada prioritariamente para entender a energia escura – outro grande problema não resolvido da cosmologia –, há esperanças de que ela possa ajudar a resolver também o mistério da matéria escura. O DES deve entrar em funcionamento em 2010, com a participação de cientistas brasileiros do Observatório Nacional, do CBPF e das Universidades Federais do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul.
Em qualquer uma dessas iniciativas, é grande a expectativa de que o problema da matéria escura seja resolvido de uma vez por todas. “Vivemos um momento muito interessante na história da cosmologia. Temos muitas informações, uma história coerente do universo e duas grandes incógnitas – a matéria escura e a energia escura”, resume Martín Makler. “Existe uma esperança de que nos próximos cinco ou dez anos se detecte a matéria escura. Já no caso da energia escura a questão está bem mais em aberto e a previsão é bem menos otimista.”
Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
15/08/2007