Perfil de um patenteador

Pastilha de silício com um transistor fabricado por estudantes de engenharia elétrica da Universidade de Delaware (EUA). O exercício envolveu aplicações práticas de engenharia elétrica, física do estado sólido e química, tais como fotolitografia, oxidação, difusão, metalização e desbaste iônico – exatamente o tipo de diálogo transdisciplinar que falta aos estudantes brasileiros, na análise do colunista (foto: Univ. de Delaware).

Depois que a coluna de outubro foi ao ar, tomei conhecimento da matéria “Memórias de futuro”, publicada na edição de novembro da revista Pesquisa Fapesp. A reportagem contém a seguinte declaração atribuída ao professor Elson Longo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), sobre seus estudos com materiais ferroelétricos:

“Começamos as pesquisas na mesma época que o Carlos Araújo, na Universidade do Colorado (…) Trabalhamos basicamente com os mesmos compostos desde então, mas ele patenteou o conhecimento gerado pela equipe dele e montou uma empresa”.

Em tempos de inovação tecnológica, a informação é mais que suficiente para que voltemos ao tema abordado em outubro. O que poderia justificar o fato de que o grupo americano patenteou suas descobertas, enquanto o brasileiro apenas publicou os resultados de suas pesquisas? Não sei se a resposta é possível em toda sua extensão, mas é provável que tenhamos alguns indicativos importantes.

Vimos na coluna anterior que o processo de manufatura utilizado na fábrica de São Carlos consiste na deposição de memórias ferroelétricas sobre uma pastilha de silício pronta, com toda a parte lógica preparada por terceiros. Precisamos agora entender um pouco melhor o que significa esse processo, conhecido na literatura em língua inglesa como front end – uma espécie de interface entre o usuário final e o operador. Este, por sua vez, é representado em nosso exemplo pela lógica na pastilha de silício e denominado back end.

Na fábrica da Symetrix-Encalso-Damha a ser instalada em São Carlos, o coração do processo front end é um filme fino de SrBi 2 Ta 2 O 9 , o ferroelétrico cujas propriedades foram bem estudadas por Elson Longo e Carlos Paz de Araújo. Portanto, uma parte importante do processo – a boa preparação do material – era dominada desde os anos 1990. Mas um projeto de chip envolve muito mais do que isso.

Na verdade, ele envolve o domínio da teoria e dos processos típicos da fabricação de semicondutores. Trata-se de uma área de conhecimento que nasce na física, passa pela química e desemboca na engenharia e na ciência dos materiais. Há que se dominar a teoria dos transistores, a deposição de filmes finos por intermédio de diferentes técnicas, os processos de oxidação do silício, de difusão e de implantação iônica de impurezas para a fabricação dos transistores de efeito de campo de semicondutor de óxido metálico (Mosfet na sigla em inglês) e a tecnologia complementar, conhecida pela sigla CMOS.

Para resumir, tudo isso pode se enquadrar em algo que se poderia chamar de engenharia de dispositivos eletrônicos, um espaço a ser ocupado por engenheiros, físicos e químicos. Aparentemente os profissionais formados nos Estados Unidos estão mais adaptados a transitar nesse espaço do que aqueles formados no Brasil.

Formação básica

Arranjo experimental esquemático para observação do efeito Hall, fenômeno eletromagnético com importante aplicação na produção de circuitos integrados. O experimento permite a abordagem de inúmeros conceitos de eletromagnetismo, física de semicondutores e sensores magnéticos. O colunista defende a realização de experimentos como esse para estimular o diálogo entre ciência básica e aplicada (arte: Søren Peo Pedersen).

Minha experiência com estudantes brasileiros de engenharia, física e química indica que é praticamente impossível levar um papo formal sobre gás de elétrons com estudantes médios de engenharia, ou sobre portas lógicas com estudantes médios de física e química. Essa constatação mostra que precisamos investir na formação básica dos primeiros e na formação prática dos últimos.

E como fazer isso? Em vez de ensinar aos estudantes de engenharia apenas as funções terminais de um dispositivo eletrônico, seria melhor ensinar também os mecanismos responsáveis pelo seu funcionamento, isto é, a física dos dispositivos. Do ponto de vista pedagógico, essa poderia ser uma alternativa estimulante, com uma abordagem multidisciplinar.

Um bom exemplo que pode ser usado com esse propósito é o efeito Hall, fenômeno eletromagnético de física básica que ganhou importante aplicação prática na produção de circuitos integrados. Sua demonstração é um experimento razoavelmente simples, que permite a abordagem de inúmeros conceitos de física moderna, de física dos dispositivos eletrônicos e aplicações tecnológicas de sensores.

Esse é apenas um exemplo para ilustrar como um profissional preparado para desenvolver inovação tecnológica em engenharia de dispositivos deve dominar os fundamentos de métodos matemáticos, estrutura da matéria, teoria de semicondutores, processos químicos pertinentes e tudo que servir de suporte para esses assuntos.

Infelizmente, o que se observa é que os engenheiros eletrônicos brasileiros são formados pensando apenas em circuitos, sem entender de física, e os físicos que trabalham na área de matéria condensada praticamente desconhecem a engenharia de dispositivos eletrônicos, todos eles baseados nas teorias às quais eles tanto se dedicam.

O caso dos nanotubos

Nanotransistor fabricado por pesquisadores franceses e finlandeses a partir de nanotubos de carbono sobre silício oxidado, observado ao microscópio eletrônico. Só há aplicação comercial dos nanotubos se eles forem integrados a semicondutores (foto: CNRS).

Outro exemplo ilustrativo vem dos estudos sobre nanotubos de carbono. Não há aplicação comercial nessa área se os nanotubos não forem integrados a semicondutores. Para monitorar a produção acadêmica nessa área, fiz uma busca com as palavras-chave carbon nanotube e semiconductor na Web of Science, banco de dados internacional sobre ciência.

Os resultados são reveladores. Os quatro trabalhos mais citados, entre os 367 publicados, referem-se a dispositivos eletrônicos e são todos de autores estrangeiros. Se restringirmos a pesquisa a trabalhos com a participação de brasileiros, veremos que nenhum dos 14 trabalhos publicados aborda aplicações a dispositivos eletrônicos. É mais um desses bondes de inovação tecnológica que o Brasil deixar passar em branco.

O professor Carlos Paz de Araújo, formado em engenharia elétrica nos Estados Unidos e autor de mais de 180 patentes, fala com grande fluência sobre líquido de Fermi, elétrons correlacionados, efeito Hall quântico e outros fenômenos físicos avançados. Pode se tratar de um caso atípico, mas é este o perfil que devemos buscar para nossos engenheiros, físicos e químicos envolvidos com dispositivos eletrônicos. 

Parte considerável do meio acadêmico brasileiro vem defendendo abordagens multidisciplinares nos diferentes níveis de ensino, do fundamental ao universitário. A transposição das idéias para o plano operacional, no entanto, tem se mostrado incipiente. Temos poucas iniciativas de cursos universitários com esse enfoque.

Podemos citar a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP) e a recém-criada Universidade Federal do ABC (UFABC). Agora, com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), temos observado outras propostas de cursos com abordagem multidisciplinar. É um bom começo, mas muito trabalho de pesquisa pedagógica tem que ser realizado para a adequação a essa nova realidade.


Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
28/11/2008