No dia 3 de novembro de 1906, em um modesto encontro de psiquiatras da região sudoeste da Alemanha, duas pessoas ficaram mundialmente famosas. A primeira nem tanto, já que ficou conhecida apenas da comunidade médica, com o nome abreviado de Auguste D. A segunda ficou de fato bastante famosa, pois seu nome cunhou uma doença que a cada dia se torna mais prevalente nas populações humanas: Alois Alzheimer, o médico de Auguste D. que apresentou aos colegas os devastadores sintomas de demência que se precipitaram na paciente aos 50 anos e causaram a sua morte aos 56.
Auguste D (1850-1906), à esquerda, e Alois Alzheimer (1864-1915), à direita.
Alzheimer descreveu em detalhe o caráter progressivo da deterioração mental de Auguste D. e, após a morte da paciente, analisou seu cérebro e concluiu que sua doença deveria ter alguma relação com estranhas placas de um material depositado no espaço entre os neurônios e com intrigantes novelos de fibrilas (como fios emaranhados) no interior dessas células do cérebro.
Até pelo menos 70 anos depois da descrição de Alzheimer, a doença que levou seu nome era considerada uma raridade. Lembro-me do curso de medicina que fazia na Universidade Federal do Rio de Janeiro nos anos 1970, durante o qual aprendi que a demência dos idosos era causada principalmente pela arteriosclerose, um endurecimento e estreitamento das artérias cerebrais que resultavam em déficit de irrigação sangüínea do cérebro.
Nos anos seguintes, o quadro começou a mudar radicalmente, pois se reconheceu que a principal causa de demência após os 65 anos era mesmo a doença de Alzheimer. Além disso, o aumento da expectativa de vida em bom número de países, inclusive o Brasil, levou as pessoas a viverem mais, e a doença de Alzheimer se tornou cada vez mais freqüente. Atualmente, estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas em todo o mundo sofram dessa doença progressiva que provoca degeneração dos neurônios e, com ela, um severo déficit de memória, seguido de perda da capacidade de raciocínio e deterioração mental generalizada, que acaba resultando na morte do indivíduo. A doença permanece sem cura e os tratamentos disponíveis apenas retardam um pouco a progressão dos sintomas.
Mecanismos moleculares
Esse quadro dramático estimulou os neurocientistas do mundo todo a dirigirem o foco de suas pesquisas aos mecanismos moleculares da doença, com vistas a desenvolver estratégias eficazes de tratamento. Em 1984, descobriu-se a composição das placas descritas por Alzheimer: eram formadas por fibrilas, depósitos agregados de segmentos de uma proteína que normalmente fica na membrana das células nervosas. Esses segmentos protéicos, batizados de beta-amilóides, são produzidos por proteínas cortadoras especializadas (enzimas) e pareciam ser o vilão da história.
Depois se conheceu a composição molecular dos novelos fibrilares que Alzheimer também descreveu dentro dos neurônios: tratava-se da variante anômala de uma proteína com nome de letra grega – Tau – responsável pela estabilidade da estrutura interna dos neurônios. O quadro parecia fechar: um defeito (genético?) provocava a segmentação anômala da proteína precursora do beta-amilóide, e as fibrilas que se formavam causavam degeneração e morte dos neurônios, cujos detritos se misturavam ao beta-amilóide acumulando-se em placas. Neurônios doentes, morte neuronal, sintomas cada vez mais graves.
Logo se descobriu que não era bem assim. Para isso, contribuiu fortemente um grupo de neurocientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – liderados por Sergio Ferreira e Fernanda DeFelice. O trabalho deles, em paralelo com outros grupos em diversos países, mostrou recentemente que o vilão da doença de Alzheimer não é o beta-amilóide fibrilar, como se supôs inicialmente. As verdadeiras neurotoxinas são agregados bem menores que as fibrilas, chamados oligômeros.
Esses oligômeros, também formados pela proteína beta-amilóide, são capazes de se dissolver e difundir entre os neurônios e, assim, agir sobre eles, interferindo de um modo cujo funcionamento ainda é mal conhecido. As placas e novelos fibrilares descritos por Alzheimer passaram a ser considerados conseqüência, e não causa, da lesão avançada dos neurônios, quem sabe mesmo uma forma de resistência deles ao distúrbio que os agride.
Proposta instigante
O grupo da UFRJ, entretanto, foi mais ousado. Em artigo a ser publicado no número de outubro da revista científica Journal of Neurochemistry , mostrou que a propriedade de danificar neurônios pode ser uma característica das proteínas em geral, ou pelo menos de muitas delas, quando, em certas condições, são levadas a formar oligômeros. Marcelo Vieira, primeiro autor do artigo, e um numeroso time de colaboradores de Ferreira e DeFelice, trabalharam com uma inocente proteína presente na clara de ovo, chamada lisozima. Aplicando certas condições artificiais a essa proteína, os pesquisadores conseguiram produzir oligômeros de lisozima. Depois, aplicando os oligômeros tanto a neurônios cultivados como diretamente ao cérebro de ratos de laboratório, conseguiram provocar alterações muito semelhantes às que caracterizam a doença de Alzheimer. ( Clique aqui para ver o esquema do experimento dos pesquisadores brasileiros).
À esquerda, o segmento protéico patogênico beta-amilóide. À direita, a lisozima da clara de ovo, normalmente inócua. A inocente lisozima, em condições físico-químicas particulares, pode ser também segmentada em oligômeros e causar dano aos neurônios semelhante ao que produzem os oligômeros de beta-amilóide.
Trata-se de um grande avanço, porque se a neurotoxicidade passa a ser considerada uma propriedade geral de proteínas quando adquirem a forma de oligômeros, fica muito mais fácil inventar modelos de estudo das doenças neurodegenerativas (não apenas Alzheimer), cujos mecanismos causais seriam os mesmos ou muito semelhantes. E é claro que isso torna mais acessível imaginar alternativas terapêuticas para elas.
Pessimistas como o neuroquímico inglês John Hardy chamam a atenção para o fato de que, cem anos depois da descrição de Alois Alzheimer, Auguste D. continuaria sem tratamento e morreria em poucos anos, como ocorreu. Mas, a julgar pela velocidade trepidante dos avanços da pesquisa nessa área, os otimistas como eu podem contra-argumentar que o conhecimento acumulado dos mecanismos moleculares da doença já permite vislumbrar uma luz no fim do túnel. Uma luz de memória e consciência na escuridão da demência e do abandono em que vivem esses pacientes.
SUGESTÕES PARA LEITURA
J. Hardy (2006) A hundred years of Alzheimer’s disease research. Neuron , vol. 52, pp.3-13.
D.H. Small e R. Cappai (2006) Alois Alzheimer and Alzheimer’s disease: a centennial perspective. Journal of Neurochemistry , vol. 99: pp.708-710.
M.N.N. Vieira e colaboradores (2007) Soluble olygomers from a non-disease related protein mimic Aβ-induced tau hyperphosphorylation and neurodegeneration. Journal of Neurochemistry , vol.103: pp. 736-748.
Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
28/09/2007