Quando uma corrente elétrica percorre um condutor (como um chuveiro, forno elétrico ou lâmpadas incandescentes), este irradia calor em decorrência do efeito Joule . Essa irradiação representa uma perda considerável de energia, da ordem de 2,5% nos casos de transmissão pela rede elétrica. Para uma usina similar à hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia, com potência instalada de aproximadamente 1.000 megawatts, a perda corresponde a 25 megawatts, o suficiente para abastecer mais de 2.500 residências.
O holandês Heike Kamerlingh Onnes (1853-1926), ganhador do Nobel de física de 1913, descobriu a supercondutividade (foto: Museum Boerhaave).
Até a primeira década do século 20, não havia qualquer expectativa para se mudar esse panorama. A resistência elétrica era algo inerente aos condutores e não havia nada que se pudesse fazer: a humanidade que aprendesse a lidar com esse desperdício natural. Até que, de repente, ao desenvolver a tecnologia para a liquefação do hélio, em 1911, o físico holandês Heike Kamerlingh Onnes (1853-1926) descobriu que alguns metais apresentavam resistência nula em temperaturas inferiores a 4,2 K (- 269ºC), exatamente a temperatura em que o hélio passa do estado gasoso para o líquido.
Deve ter sido enorme a alegria que tomou conta de cientistas e engenheiros da época. Conduzir eletricidade sem perda? Um sonho inimaginável! Mas, entre idas e vindas, ele foi se convertendo em pesadelo, diante das dificuldades para a compreensão do fenômeno e para a obtenção de materiais apropriados. Em1986, porém, o sonho voltou com força total.
A odisséia da condutividade é uma longa, bela e surpreendente história, com uma boa participação de cientistas brasileiros ( veja aqui o “mapa brasileiro” da supercondutividade). Para contá-la em um único artigo, precisaríamos deixar de lado vários detalhes interessantes. Por isso, decidimos dedicar nossas próximas três colunas para apresentá-la devidamente. É o que faremos a partir deste artigo. Hoje ficaremos no laboratório, mas logo colocaremos o pé na fábrica.
Temperatura crítica
Quando um metal conduz corrente elétrica sem apresentar resistência, diz-se que ele está no estado supercondutor. A temperatura abaixo da qual ele se torna um supercondutor é conhecida como temperatura crítica, T c . Mas, como disse Billy Blanco no samba “Choro chorado”, “o que dá pra rir, dá pra chorar”, e o próprio Kamerlingh Onnes fez uma descoberta que jogou um balde de água fria no ânimo dos estudiosos.
Ele constatou que a supercondutividade desaparece quando o material encontra-se em uma região com campo magnético acima de determinado valor, conhecido como campo magnético crítico, H c , ou quando a densidade de corrente que ele conduz ultrapassa um valor crítico, J c (a densidade de corrente elétrica é a razão entre a corrente e a área perpendicular ao comprimento do fio).
Para complicar, os valores obtidos para T c , H c e J c naquele início do século 20 eram muito pequenos para as necessidades tecnológicas. Portanto, o sonho do condutor perfeito não pôde ser imediatamente realizado. Tudo era desfavorável e ninguém conseguia explicar bem aquele estranho fenômeno.
O efeito Meissner explica a imagem acima, obtida por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica da Eletrobrás (Cepel). A foto mostra um ímã levitando sobre um conjunto de discos confeccionados com supercondutores de temperatura crítica superior à temperatura do nitrogênio líquido, isto é, cerca de – 196ºC. (foto: UFRJ/Cepel).
A história começou a mudar quando em 1933, os físicos alemães Walther Meissner (1882-1974) e Robert Ochsenfeld (1901-1993) descobriram o fenômeno hoje conhecido como efeito Meissner. Eles mostraram que um material no estado supercondutor é capaz de repelir um campo magnético. Dito de outra forma, um supercondutor é um diamagnético perfeito. O efeito Meissner é a base do funcionamento de uma importante aplicação tecnológica dos supercondutores, o trem Maglev (contração de ‘levitação magnética’), que levita sobre os trilhos e pode atingir velocidades acima de 400 km/h.
Novo ânimo
Logo depois da descoberta de Meissner, ficou claro que a maioria dos supercondutores com temperatura crítica acima de 10 K (ou – 263ºC) não eram perfeitamente diamagnéticos. Nesses materiais, denominados supercondutores do tipo II, campos fracos podem ser totalmente repelidos, mas campos intensos podem penetrar no material, ainda que superficialmente.
Isso significa que esses materiais apresentam dois campos críticos. O campo menor (H C1 ) define o limite entre o estado de supercondutor ideal para um estado misto, no qual o campo pode penetrar na superfície. O campo maior (H C2 ) estabelece a fronteira entre estados supercondutor e condutor. Ou seja, acima de H C2 o material passa a ser condutor. Na fase mista, entre H C1 e H C2 , há uma pequena perda de energia por efeito Joule.
Se isso pode representar uma frustração, porque deixamos de ter o supercondutor perfeito, a natureza deu novo ânimo aos pesquisadores. Alguns supercondutores do tipo II apresentam altíssimos valores de H C2 , tornando-os bons candidatos para aplicações tecnológicas.
O estabelecimento da chamada teoria BCS, em 1957, talvez tenha sido o fato mais importante na história da supercondutividade, depois da descoberta de Onnes e antes do advento das cerâmicas supercondutoras. O fenômeno essencial por trás dessa teoria é a formação de pares de elétrons durante o processo de condução elétrica. Embora a tendência de um elétron seja repelir o outro, para os supercondutores em temperaturas muito baixas a rede cristalina dá uma forcinha e faz com que essas partículas formem pares, também conhecidos como pares de Cooper.
A teoria BCS mostra que esses pares são os principais responsáveis pela supercondutividade. Para se ter uma idéia do impacto dessa teoria, basta lembrar que entre 1945 e 1955 foram publicados 246 trabalhos sobre supercondutividade. Esse número foi multiplicado por cinco na década seguinte, pulando para 1.241!
Novos compostos
O número de trabalhos publicados sobre condutividade quintuplicou entre o período 1945-1955 e a década seguinte. Houve ainda um grande impulso no período 1989-1999, após a descoberta das cerâmicas supercondutoras em 1986 (fonte: Institute for Scientific Information).
Não foi só a teoria BCS que deixou a comunidade científica animada. No início dos anos 1960, vários supercondutores tipo II foram descobertos, entre os quais destacam-se o composto Nb 3
Sn e as ligas de nióbio e titânio, materiais com propriedades mais do que interessantes para aplicações tecnológicas. Havia, portanto, muita esperança de que a indústria da supercondutividade deslanchasse.
No entanto, o sonho da industrialização dos supercondutores em larga escala não se realizou e quase virou pesadelo. A maior temperatura crítica observada na época não ultrapassava 25 K (- 248ºC). O alto custo de operação em temperaturas inferiores a 30 K (- 243ºC) limitou as aplicações tecnológicas a sofisticados equipamentos de laboratório e a equipamentos de ressonância magnética usados em hospitais.
A área ficou praticamente estagnada nos anos seguintes. A quantidade de trabalhos publicados entre 1975 e 1985 foi praticamente igual à da década anterior. Mas observe no gráfico o grande salto ocorrido na década 1989-1999. A explosão de interesse veio com a descoberta das cerâmicas supercondutoras, em 1986, e se explica também pelo fato de a temperatura crítica de alguns dos compostos observados ter ultrapassado a temperatura do nitrogênio líquido (77 K ou – 196ºC).
Atualmente já temos materiais com temperatura crítica na faixa dos 130 K (- 143ºC). Desde então, essas cerâmicas são conhecidas como supercondutores de alta temperatura crítica (HTSC, na sigla em inglês), enquanto os supercondutores metálicos passaram a ser denominados supercondutores de baixa temperatura crítica (LTSC).
O surgimento dos HTSC fez renascer o sonho da industrialização de supercondutores em larga escala. Passar da temperatura de hélio líquido para a temperatura de nitrogênio líquido é realmente animador. Dificuldades técnicas persistem, inúmeras e enormes, mas os cientistas e engenheiros já colocaram o pé fora do laboratório. No mês que vem veremos como eles estão chegando ao galpão da fábrica.
Carlos Alberto dos Santos
Núcleo de Educação a Distância
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul
25/05/2007