Fantasmas como Gasparzinho e outros seres sobrenaturais conseguem atravessar paredes na maior tranqüilidade. Mas isso só acontece na nossa imaginação ou na ficção, certo? Você já viu alguém atravessar uma parede? Já jogou algum objeto contra uma parede e o viu atravessá-la, sem a quebrar? De fato, isso não acontece no mundo macroscópico, mas quando os objetos vão se tornando microscópicos, cresce a probabilidade de isso acontecer. Acontece com elétrons. Como assim? Um elétron pode atravessar uma parede? Sim, depende da parede! Isso ocorre graças a uma estranha propriedade – chamada tunelamento do elétron – que discutiremos na coluna deste mês.
Você deve estar espantado simplesmente porque o elétron é uma partícula material. Com a luz, isso parece normal: estamos acostumados a vê-la atravessar paredes de vidro e até de material opaco, desde que sejam bem finas. Você também sabe que os raios X podem atravessar materiais opacos. Isso acontece porque tanto a luz quanto os raios X são ondas eletromagnéticas. Aí está a chave do segredo: o elétron pode atravessar um material opaco porque, em determinadas circunstâncias, deixa de ser uma partícula para se tornar uma onda.
O físico Leo Esaki, ganhador do Nobel de física de 1973 pela descoberta do tunelamento do elétron, em laboratório da Sony (foto: Sony).
Para aumentar seu espanto, só falta dizer que esse efeito túnel é o principal responsável pelos grandes avanços tecnológicos da microeletrônica e rendeu ao seu descobridor, o japonês Leo Esaki (1925-), o Prêmio Nobel de Física de 1973.
Tudo começou quando, em 1956, os engenheiros da Sony descobriram um defeito no transistor 2T7. Aparentemente, o dispositivo deixava de funcionar quando o nível de dopagem na junção PN excedia certo limite. Esaki e dois estagiários foram designados para investigar o problema. Logo descobriram fenômenos estranhos, como resistência elétrica negativa no caso de alta concentração de dopagem. O problema do 2T7 estava resolvido: bastava dopá-lo abaixo do limite da resistência negativa.
A Sony passou a produzir um transistor de alta qualidade, mas Esaki continuou sua pesquisa para descobrir a origem da resistência negativa. Preparou diodos de germânio com junção PN altamente dopada. Descobriu que, ao contrário dos diodos convencionais, em que a corrente elétrica surge apenas quando a voltagem é aplicada em um sentido, no seu diodo havia corrente nos dois sentidos, da mesma forma como acontece no diodo Zener.
A propriedade característica do diodo de Esaki era a resistência negativa. O físico japonês mostrou que isso era devido ao tunelamento de elétrons através da junção. A partir de então, o diodo passou a ser conhecido como diodo túnel, ou diodo de tunelamento. Trata-se de um dispositivo de alta velocidade, com o qual osciladores de alta freqüência podem ser construídos.
Relógio atômico
O primeiro relógio atômico, construído em 1949 pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos EUA (foto: NIST).
O fenômeno do tunelamento está por trás ainda de uma série de outras aplicações. Na verdade, as manifestações experimentais do fenômeno foram um dos primeiros triunfos da teoria quântica. Já nos anos 1920, a idéia de tunelamento foi utilizada para explicar resultados de decaimento nuclear observados pelo inglês Ernest Rutherford (1871-1937) na primeira década do século 20.
Em 1949, a freqüência de tunelamento do nitrogênio na molécula de amônia (NH3) foi utilizada para a fabricação do primeiro relógio atômico. Nessa molécula, o átomo de nitrogênio pode ocupar mais de um lugar. Ele muda de um para outro através de um processo de tunelamento, com freqüência igual a 24 GHz. É a constância dessa freqüência que possibilita seu uso em um relógio atômico.
No diodo túnel, a corrente elétrica pode mudar de sentido em alta freqüência, uma propriedade bastante atraente para a indústria de celulares e de memórias rápidas. A NEC está desenvolvendo uma memória MRAM (memória de acesso randômico magnetorresistiva, na sigla em inglês) de alta velocidade para a próxima geração de circuitos de integração de alta escala (LSI, na sigla inglesa).
Essa nova tecnologia inclui junções de tunelamento magnetorresistivo (MTJ, na sigla em inglês). Na junção MTJ, o tunelamento do elétron é controlado pelo seu spin, ao contrário do diodo, no qual o tunelamento é controlado pela carga elétrica. É isso que permite a fabricação de memórias rápidas e com alta densidade de gravação.
Microscópio de tunelamento do Instituto Van der Waals Zeeman, na Universidade de Amsterdã. Equipamentos como esse são os únicos capazes de observar fenômenos em escala atômica (foto: Universidade de Amsterdã).
O microscópio de tunelamento é outra dessas extraordinárias aplicações do efeito túnel. Nesse equipamento, uma ponta metálica extremamente fina, micrométrica, flutua sobre a superfície a ser analisada. Quando uma diferença de potencial é aplicada entre a ponta e a superfície, o efeito túnel permite que elétrons saltem da uma para a outra. A corrente elétrica resultante é medida em função da posição e transformada em imagem.
Não se encerra aqui a extraordinária jornada do efeito túnel, e nem tudo que ela proporcionou foi dito. Logo depois da descoberta de Esaki, por exemplo, Brian Josephson descobriu que o mesmo fenômeno ocorria em materiais supercondutores. A junção Josephson teve e continua tendo enorme repercussão na industrialização de dispositivos supercondutores.
Para o futuro próximo são aguardadas aplicações em nanorrobótica, a manipulação de objetos com dimensões nanométricas com o auxílio do microscópio de tunelamento. A aventura das aplicações tecnológicas desse estranho fenômeno, pelo visto, apenas começou.
Carlos Alberto dos Santos
Núcleo de Educação a Distância
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul
27/07/2007