Para Leo Epstein, in memoriam.
Há vários anos, li o livro My German question: growing up in nazi Berlin, do historiador alemão Peter Gay (1923- ), publicado em 1998 e infelizmente nunca traduzido para o português. Trata-se de um relato de sua infância na Alemanha dos anos 1920 e 1930, antes de tomar o navio que o levaria primeiro a Cuba e depois aos Estados Unidos.
Lembro de ter ficado impressionada com a sua descrição dos jogos olímpicos de 1936, quando, ao assistir a um jogo no estádio de Berlim, ele – na época Peter Fröhlich – se apavorou ao ver o público em uníssono saudando a entrada de Hitler. Seria ele o único judeu do estádio?
Talvez no mesmo dia em que o menino Peter se dirigia às arquibancadas do então moderníssimo Estádio Olímpico de Berlim, meu avô desembarcava em Salvador, após ter deixado o porto de Hamburgo nos primeiros dias dos jogos. Ao chegar à Bahia, se o desconforto não foi o mesmo sentido por Gay no estádio – já sabia que não seria o único judeu dali, pois viajava com um primo e era esperado por Simon, seu irmão mais velho –, ele também não foi pequeno. Devidamente adaptado aos costumes brasileiros, Simon abraçava todos os conhecidos no cais, inclusive os negros que meu avô, nascido e criado no interior da Alemanha, jamais havia visto de perto.
Talvez as semelhanças entre a trajetória de meu avô e a de Peter Gay parem por aí, embora não seja pouco o fato de, sendo judeus alemães, terem ambos sobrevivido ao nazismo. Oito anos mais velho do que Gay, meu avô sentiu na pele os efeitos das leis antissemitas, que o impediram de cursar a faculdade de geografia e o fizeram ver que a única saída era a entrada do navio. Mas conseguiu trazer consigo, entre tantos outros livros, os atlas de que tanto gostava, que agora descansam na minha estante.
Fonte histórica
Ao contrário do que fez Peter Gay e outros intelectuais judeus como Elias Canetti, Eric Hobsbawm e Boris Fausto, que viram na escrita de suas memórias de infância a possibilidade de refletir sobre parte da história do século 20, talvez jamais ocorresse ao meu avô fazer o mesmo.
Isto é, até o dia em que ele me ligou, entusiasmado, dizendo que tinha sido transformado em uma fonte. Isto foi em 1997, pouco depois do falecimento da minha avó. “Fonte”, disse eu, “Como assim?” “Você é historiadora, você sabe o que é uma fonte”, ele repetiu, agora carregando nos erres do sotaque que ele de verdade não tinha. Um documento histórico. Tinha acabado de receber uma carta de um historiador da Alemanha, que estudava a vida dos judeus na região de Freiburg, e soube que ele era o mais antigo judeu sobrevivente da cidade.
Antes de sair da Alemanha, aos 21 anos, meu avô já havia trabalhado por quase seis anos em uma fábrica de tabaco, onde fazia de tudo, desde colocar pregos em caixotes a misturar e provar o fumo. Descendente de famílias estabelecidas na mesma região do território alemão há várias gerações – sua mãe era, inclusive, prima distante de Alfred Dreyfus, o capitão francês injustamente acusado de passar informações secretas aos alemães em 1894, e que dividiu a sociedade francesa da época –, ele era, sem saber, uma importante testemunha da vida judaica alemã do início do século 20.
Interessante que, ao saber serem suas memórias valiosas, meu avô se transformou. Antes, para nós, seus netos, sua história começava no dia em que ele chegou à Bahia e começou a trabalhar em uma fábrica de ferragens. Agora ele vivia cercado de revistas acadêmicas em alemão, lia monografias, dava entrevistas por carta e por telefone, reconhecia pessoas em fotografias. Até à sua cidade natal ele voltou, onde já havia estado uma vez, na década de 1960, mas dessa vez para dar palestras e conversar com os jovens sobre a sua vida.
Ter virado fonte histórica, como ele me disse naquele dia, foi o que deu, em parte, sentido aos últimos anos da vida de meu avô. O resto do seu apego à existência vinha da dedicação à religião e à família, que, no fundo, eram para ele a mesma coisa.
“Hoje é misturado”
Hoje, exatos dois meses após seu falecimento, aos 97 anos de idade, fico pensando no que ele diria se eu lhe perguntasse como gostaria que nos lembrássemos de sua vida.
Encontro a resposta relendo a entrevista que ele concedeu à Paula Ribeiro há cerca de dez anos, no âmbito do Projeto Memória da Imigração – Imigrantes Judeus no Rio de Janeiro, realizado pelo Museu Judaico do Rio de Janeiro e pela Universidade Estácio de Sá.
A certa altura, se referindo à criação de novas sinagogas no Rio dos anos 1940, ele diz assim:
“Eu entrei na Associação Religiosa Israelita [ARI, sinagoga fundada por judeus alemães] um ano depois de fundada (…). É a questão de todas as outras sinagogas: todos procuram as suas origens. (…) Veja bem, cada um quer ouvir aquilo que ouviu na casa dos pais lá nos cafundós da terra. Então, quantas brigas já houve em outras sinagogas porque aquele não cantou como cantou o pai dele. É isso! E aos poucos, você vai ver que vai acontecer, que tudo isso vai desaparecer, porque vai se misturar. Nunca vi, graças a Deus, uma mistura tão grande e tão bem aceita como [aqui]. (…) Aqueles alemães de 1942 queriam fazer alguma coisa que eles conheciam da Alemanha ainda, mas com o tempo foi mudando. (…) Naquele tempo era tudo separado: mulher e homem [rezavam] separado. Hoje é misturado, sentado misturado. Chama-se as mulheres (…) para lerem a Torá. Não se podia compreender isso antes. Eu, na Alemanha, não podia compreender isso. Diziam: “Mas isso é coisa de homem”. Mas a rigor, somos todos iguais.”
No dia do seu enterro, dois rabinos, de correntes religiosas quase antagônicas, sentaram-se lado a lado. Ao longo das rezas feitas durante a semana do luto, a eles veio se juntar ainda um terceiro rabino. Meu avô era o oposto daquela piada que dizia que um judeu, em uma ilha deserta, construía duas sinagogas: uma para frequentar, a outra para jamais pisar. Ele entrava em todas.
Em pleno século 21, em tempos de pastor Feliciano à frente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados, mesma época em que se inventa no Brasil (e no resto do mundo) uma ortodoxia judaica que por aqui jamais existiu – com homens e mulheres vestidos à moda polonesa de 300 anos atrás – só resta torcer para que nós, seus netos e bisnetos, tenhamos aprendido a sua lição.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro