A cada fim de ano somos inundados por retrospectivas do que passou e perspectivas do que virá; algumas baseadas em fontes e indicativos confiáveis e outras são fruto de pura imaginação, tal qual o trabalho de pitonisa. Não fujo à regra, mas não pretendo fazer uma abordagem ampla, como a que os jornalistas da CH On-line fizeram, de modo competente, como sempre.
Restringir-me-ei ao grafeno, um material cuja preparação teve início em 2004 e que levou a Academia Real das Ciências da Suécia a conceder o Prêmio Nobel de Física de 2010 a Andre Geim e Konstantin Novoselov. Olhando em retrospecto, o grafeno merece o destaque que pretendo dar. Olhando para frente, ele vale a atenção que tem recebido da comunidade científica e da indústria.
De 2010 a 2012, quase 20 mil artigos foram publicados sobre o grafeno, aproximadamente o dobro do que foi publicado sobre duas áreas importantes da física: relatividade e cosmologia. Esse imenso interesse tem a ver com as possibilidades tecnológicas e com a concessão do Prêmio Nobel. Tanto é que, entre 2007 e 2009, esse material foi objeto em menos de 5 mil artigos.
Escrevi meu primeiro texto sobre o grafeno em fevereiro de 2009, motivado por uma entrevista de Konstantin Novoselov na Science Watch. Em junho de 2010, escrevi sobre suas promessas tecnológicas. Portanto, não fiquei surpreso quando a imprensa noticiou, em outubro daquele ano, a concessão do Prêmio Nobel de Física.
Um semicondutor incompleto
O grafeno é uma forma de carbono, uma folha com espessura de alguns átomos, constituindo o que é conhecido como estrutura genuinamente bidimensional. Se for enrolado na forma de um canudo, recebe o nome de nanotubo de carbono. Se for manipulado para formar uma bola, é conhecido como fulereno.
Na tabela periódica, o carbono fica acima do silício, na região dos semicondutores. Ignorado por muito tempo como material semicondutor, esse elemento, na forma de grafeno, ameaça destronar o silício na indústria eletrônica.
O primeiro transistor de grafeno veio ao mundo em 2007, com todos os defeitos de um dispositivo pioneiro, confeccionado com um material ainda pouco conhecido no que se refere às suas funcionalidades. Por exemplo, uma das grandes vantagens do grafeno – a alta velocidade dos elétrons e das lacunas (não se preocupe em saber o que são essas lacunas, é algo que tem carga positiva) – está associada a uma quase incontornável desvantagem.
Em um semicondutor, os elétrons se locomovem em uma via denominada banda de condução, enquanto as lacunas fazem o mesmo na banda de valência. A banda de condução é separada da banda de valência pela banda proibida, que recebe esse nome porque o elétron não pode transitar nela; seu tamanho varia de acordo o semicondutor. A situação é similar a duas rodovias separadas por um meio-fio de largura variável (veja uma metáfora sobre isso na coluna de fevereiro de 2009).
A condução elétrica se dá quando determinada voltagem proporciona a passagem de elétrons da banda de valência para a de condução, onde eles têm liberdade para se locomover. Esse é o estado ‘ligado’. Na inexistência de voltagem – ou, para ser mais preciso, na existência de voltagem abaixo de determinado valor, característico de cada semicondutor –, não há condução, pois o elétron não pode se locomover na banda de valência nem pode saltar por cima da banda proibida para atingir a banda de condução. Isso caracteriza o estado ‘desligado’.
Ou seja, com voltagem acima de determinado valor, tem-se o estado ligado, no qual o elétron pula a banda proibida e chega à de condução. Com voltagem abaixo desse valor, tem-se o estado desligado, no qual o elétron permanece na banda de valência. Esse mecanismo liga-desliga é essencial para o funcionamento dos transistores; um dos estados é associado ao bit “0”, enquanto ao outro se associa o bit “1”. A existência da banda proibida também é fundamental, pois ela caracteriza o estado desligado.
O grafeno, no entanto, não possui banda proibida, de modo que, mesmo desligado, sempre haverá algum movimento de elétron, uma espécie de corrente de fuga ou um tipo de vazamento de corrente. Superar esse problema e transformar o grafeno em material eletrônico competitivo com o silício tem sido o grande desafio imposto aos pesquisadores.
Corrida de obstáculos
Inúmeras soluções têm sido propostas, mas nenhuma capaz de transformar os transistores de grafeno em dispositivos comercialmente viáveis. Até recentemente, as alternativas funcionavam como aquela máxima do samba de Billy Blanco, “o que dá para rir, dá para chorar”. Artifícios engenhosos para criar bandas proibidas no grafeno terminavam por prejudicar o funcionamento do transistor.
No início de 2012, pesquisadores da Universidade de Manchester, no Reino Unido, liderados por Andre Geim, Konstantin Novoselov e Leonid Ponomarenko, desenvolveram a técnica de fabricação vertical de transistor de grafeno. A estrutura é uma espécie de sanduíche, onde camadas de grafeno fazem o papel do pão e uma camada de um material dielétrico, como o nitreto de boro, faz o papel do recheio. Os testes mostraram que esse tipo de estrutura evita a fuga de correntes, de modo que os estados ligado e desligado são bem caracterizados.
Agora, no final do ano, pesquisadores da Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos, fabricaram um transistor similar, em substrato flexível, que vem batendo vários recordes, tendo maior robustez mecânica, resistência a líquidos de uso comum – leite, água, café e chá –, funcionamento em frequência de aproximadamente 3 gigahertz – valor inalcançável por seus antecessores. Com tais propriedades, espera-se que esse transistor possa ser utilizado em celulares flexíveis e painéis eletrônicos.
Garantir os estados ligado-desligado bem definidos era um dos grandes obstáculos para levar os transistores de grafeno das bancadas dos laboratórios para as linhas de produção da indústria. Agora que o desafio parece estar sendo superado, vale a pergunta: o grafeno será, mesmo, o silício do século 21? Há quem diga que sim, e há quem duvide. Os mais céticos acreditam que o grafeno será usado apenas como tecnologia complementar, em dispositivos à base de silício. Aguardemos a retrospectiva de 2013.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana