Há poucas categorias tão onipresentes nas discussões atuais sobre a condição de nossas sociedades quanto a de ‘desenvolvimento’. Cadernos inteiros de nossos jornais dedicam-se regularmente aos desafios e dilemas que cercam o projeto do desenvolvimento econômico de nosso país ou de toda a humanidade.
De um modo geral, estamos informados sobre a permanente busca das políticas governamentais modernas de progresso material por meio da expansão das bases da atividade econômica, de sua circulação mercantil e de sua apropriação pelo consumo generalizado.
Mas sabemos provavelmente mais ainda sobre os riscos e ameaças que essa expansão vem acarretando para nossa população e para o planeta em geral. Nos últimos dias, quem não se assustou com o vazamento de petróleo na costa fluminense ou não se preocupou com a retomada das obras da hidrelétrica de Belo Monte no Rio Xingu e com a possibilidade de abertura do Parque Nacional da Serra da Canastra à exploração de diamantes?
Ainda aqui na Ciência Hoje On-line, meu colega Jean Remy Guimarães acaba de descrever com detalhes os desastres ambientais decorrentes da mineração desenfreada de ouro no Equador (Leia coluna Sobre ouro, ceviche e arroz).
A questão não é nova, porém. Desde o começo da Revolução Industrial contrapõem-se sistematicamente os desejos de uma constante e infinita melhoria das condições de reprodução econômica das populações e os alertas sobre a destruição física e a degradação humana acarretadas pelo industrialismo e pelas relações capitalistas de produção.
A imagem da locomotiva a vapor foi ao mesmo tempo um símbolo do progresso triunfante e um agourento fantasma a recobrir de cinza e fumaça os campos e as cidades. O próprio socialismo, crítico da desumanização proletária, não renegou o princípio do avanço ilimitado das forças produtivas e dá, ainda hoje, o aval à desastrosa modernização chinesa.
Antropologia e desenvolvimento
Acaba de se realizar em Brasília a 2ª Conferência de Desenvolvimento (Code), organizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com o propósito de “debater e problematizar as diversas formulações possíveis para conceitos, trajetórias, atores, instituições e políticas públicas para o desenvolvimento brasileiro”.
Diversas associações de ciências humanas juntaram-se a esse debate, tendo a Associação Brasileira de Antropologia organizado e participado de duas séries de mesas em que se assumiu o desafio do encontro.
Há duas vias possíveis para a discussão da relação entre desenvolvimento e antropologia.
A primeira segue o rumo da institucionalização crescente de uma ‘antropologia do desenvolvimento’, dedicada ao conhecimento das formas pelas quais se organiza esse campo, ou seja, as ações voltadas para o progresso material e a promoção social das populações humanas em situações desprivilegiadas ou vulneráveis em todo o planeta. Isso envolve particularmente o que se desenrola no plano internacional, associado à dinâmica da globalização.
A segunda via é a do reconhecimento e articulação de um vasto número de linhas de pesquisa antropológica que tem em comum abordar questões de reprodução, identidade e transformação social em contextos desprivilegiados, vulneráveis e subordinados a dinâmicas de grande escala, inclusive transnacionais.
No entanto, esses trabalhos não se voltam prioritariamente a uma problemática do ‘desenvolvimento’ em si. Constituem, assim, não uma especialização disciplinar, mas um foco, a que se pode chamar de ‘antropologia e desenvolvimento’.
No encontro de Brasília, antropólogos, sociólogos, economistas e cientistas políticos examinaram de diversos ângulos as formas contemporâneas do dilema do desenvolvimento.
Todos reconhecem a insanidade do sistema atual de exploração a qualquer custo dos recursos ambientais e todos denunciam a violência com que os grandes projetos de desenvolvimento são implantados, em detrimento do interesse de amplas populações locais.
Desatino coletivo
Embora haja um grande ceticismo por parte desses atores em relação às possibilidades de plena assunção pelos governos atuais de uma nova visão de ‘desenvolvimento sustentável’, eles não pretendem esmorecer em sua ação combinada de estudos e intervenção pública, visando a conscientização e responsabilização pelo destino não apenas de nossa geração, mas de todo o planeta e, com ele, de toda a humanidade.
Essa verdadeira militância científica denuncia os procedimentos autoritários com que se afirmam os empreendimentos desenvolvimentistas e também os saberes que justificam tais políticas com argumentos naturalistas, tecnicistas, em que um abstrato ‘bem comum’ ocupa o lugar concreto do bem de todos e de cada um.
Luta por uma disposição democrática na condução dos projetos econômicos de grande escala, atenta ao que já se vem chamando de ‘justiça ambiental’ ou de ‘modernidades alternativas’.
É generalizada a consciência de que não se poderá mudar de um dia para o outro o paradigma do melhorismo iluminista, dessa aspiração de construção de um paraíso de consumo sobre a terra.
Há hoje, porém, conhecimento suficiente sobre a vida social, econômica e política de todo este mundo para deixar claro que o paradigma terá que ser modificado, nuançado, desviado de um curso insano.
A política da competição entre as nações, armada pela crescente interdependência econômica global, é por ora um estímulo ao desatino coletivo. A destruição se dá no Brasil, assim como no Equador, na China ou na África do Sul.
A antropologia se esforça para conhecer e dar a conhecer os infindáveis nódulos de tão grande trama e, nessa luta, não pode calar ao se deparar com os mil infernos localizados que essa inglória busca de gozo incendeia aqui e ali.
Mais do que o sentido, é o destino global do humano que está em jogo.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Barroso Hoffmann, Maria. Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação: um estudo sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas. Rio de Janeiro: E-papers e Museu Nacional, 2009.
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