Com o cérebro nas mãos

Mary Shelley era a jovem esposa do poeta romântico inglês Percy Shelley e amiga do também poeta e também romântico Lord Byron quando escreveu, em 1816, um dos livros mais conhecidos da literatura fantástica: Frankenstein, o Prometeu moderno . O personagem que dá nome à obra não era o monstro, como muita gente pensa, mas sim o médico Viktor Frankenstein, que ambicionava criar um novo ser juntando partes do corpo de cadáveres: um ser perfeito, que obedecesse ordens e fizesse apenas o bem. Era a recriação do mito grego de Prometeu, aquele que tentou usurpar o direito exclusivo de Zeus de criar a vida onde ela não existia.

O fato é que o mito prometéico persistiu no imaginário dos cientistas e dos médicos ao longo dos séculos. Ele emergiu com todo realismo nos anos 1960, com os primeiros transplantes de órgãos, e mais recentemente, no limiar do século 21, com os transplantes de membros. Tendo em vista o alto risco de rejeição, infecção, câncer e outros, o transplante de mão pode não ser considerado tão importante para um paciente que perde uma delas. Mas sem dúvida se torna crucial para quem perde as duas, privando-se da capacidade de manipular objetos, escrever, tocar algum instrumento, tantas coisas.

A foto mostra o resultado do primeiro transplante de mão bem sucedido. O paciente foi o norte-americano Matthew Scott, que havia sofrido um acidente com fogos de artifício. A mão de um doador foi reconectada ao coto osso a osso, nervo a nervo, vaso a vaso, pela equipe dos cirurgiões Warren Breidenbach e Tsu-Min Tsai (foto: Jewish Hospital / Kleinert, Kutz and Associates Hand Care Center / University of Louisville).

Essa avaliação custo-benefício levou a equipe do cirurgião francês Jean-Michel Dubernard, do Hospital Edouard-Herriot, de Lyon, a indicar e realizar esse tipo de transplante em dois pacientes que haviam sofrido amputação traumática das duas mãos. Foram cirurgias bastante trabalhosas, com duração de cerca de 12 horas: imaginem o que é fixar os ossos dos cotos aos das mãos transplantadas, depois os nervos um a um, a seguir as artérias e veias, músculos e demais tecidos.

Após a cirurgia, ambos os pacientes foram medicados com drogas imunossupressoras para evitar a rejeição que o sistema imunitário realiza normalmente contra os órgãos ou membros transplantados. Foram também submetidos a um protocolo intensivo de fisioterapia, e o resultado é que gradativamente recuperaram muito de sua capacidade de manipular objetos, usando as mãos do doador.

Essa recuperação funcional foi possível porque os neurônios desses pacientes conseguiram conectar-se com os músculos e demais tecidos das mãos transplantadas. A questão que se colocava, então, era como os cérebros dos pacientes haviam se adaptado a membros novos, estranhos, que não conheciam desde sempre.

Novos conceitos para os neurocientistas
Para esclarecer essa intrigante questão, a equipe de Dubernard associou-se a um time de neurocientistas liderado pela pesquisadora Angela Sirigu, da Universidade Claude Bernard, em Lyon, com a participação da neurobióloga brasileira Claudia Vargas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O que surpreendeu nesses estudos foi a descoberta de que o córtex cerebral havia se reorganizado duas vezes. Primeiro, após a amputação: nesse momento as regiões cerebrais que representavam os cotos do antebraço e o braço haviam se expandido para ocupar o espaço que anteriormente comandava as mãos. O fenômeno já era conhecido: atribui-se a ele a ocorrência da “síndrome do membro fantasma” que os amputados em geral apresentam, pela qual sentem até mesmo dor no membro ausente, ou têm a sensação de que realizaram um movimento com ele.

A dança dos mapas: a representação desigual das diversas partes do corpo muda com a amputação e com o transplante de mãos. O desenho representa esquematicamente um dos hemisférios cerebrais em corte, e as caricaturas acima de cada um deles mostra a proporção de território ocupada por cada parte do corpo. Modificado de Farnè e colaboradores (2002) Current Biology , vol. 12, pp. 1342-1346 (2002). Clique na imagem para ampliá-la. 

A segunda reorganização cortical dos pacientes ocorreu após o transplante, quando as regiões expandidas passaram a comandar as novas mãos. É como se o córtex cerebral dançasse funcionalmente ao sabor da música: remoção da periferia, redução da área dedicada a ela; acréscimo da periferia, aumento da área cortical responsável por ela.

Essa suposta plasticidade cortical extrema dos transplantados acabou motivando outros estudos do grupo de Lyon, que surpreenderam novamente e propõem mudanças no conceito de plasticidade cerebral vigente. Desta vez, eles utilizaram indivíduos com um dos braços amputados, e aplicaram neles a técnica de estimulação magnética transcraniana, pela qual é possível ativar regiões conhecidas do córtex cerebral e analisar os efeitos subseqüentes.

Quando a estimulação era feita na região de comando do braço ausente, o indivíduo acusava a vívida impressão de ter feito um movimento com ele e, além disso, aqueles músculos do coto que estariam ligados ao braço ausente – precisamente eles – se contraíam de fato. Bem, isso muda bastante os conceitos vigentes. Os mecanismos neuronais capazes de programar os movimentos da mão ausente persistem no córtex na mesma região que agora comanda também as partes corporais adjacentes. Quer dizer: o indivíduo não perde a capacidade de realizar movimentos no membro amputado, apesar das partes adjacentes ocuparem o novo território.

Boas novas para a recuperação funcional dos amputados. Agora é só descobrir as maneiras mais eficientes para revelar essa capacidade latente que permanece. Quem sabe os transplantes sejam uma boa possibilidade? Ou próteses artificiais comandadas pelos nervos naturais do paciente?

SUGESTÕES PARA LEITURA
P. Giraux e colaboradores (2001) Cortical reorganization in motor cortex after graft of both hands. Nature Neuroscience , vol. 4, pp. 691-692.
A. Farnè e colaboradores (2002) Face or hand, not both. Perceptual correlations of reafferentation in a former amputee. Current Biology , vol. 12, pp. 1342-1246.
P. Petruzzo e colaboradores (2006) Bilateral hand transplantation: six years after the first case. American Journal of Transplantation , vol. 6, pp. 1718-1724.
C. Mercier e colaboradores (2006) Mapping phantom movement representations in the motor cortex of amputees. Brain , vol. 129, pp. 2202-2210.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
27/07/2007