Banquete indigesto

As notícias da conturbada apresentação, discussão e aprovação da proposta do novo Código Florestal Brasileiro no início do mês na Comissão Especial da Câmara são de arrepiar. O nível da discussão foi tão rasteiro quanto ficará a vegetação nativa se a proposta for aprovada em plenário e, depois, no Senado.

A notícia desse retrocesso obsceno me remete a muitos temas já comentados em colunas anteriores. Penso, em especial, na pesada herança da escravidão e da monocultura, no embate histórico – e pelo jeito ainda vigente – entre o Brasil urbano, cosmopolita e moderno e o Brasil das elites rurais, patriarcal, arcaico e predatório, como brilhantemente descrito por Giberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, respectivamente em Casa grande e senzala e Raízes do Brasil.

O nível da discussão na Câmara foi tão rasteiro quanto ficará a vegetação nativa se a proposta for aprovada

O Brasil moderno se comprometeu diante do mundo a uma redução de 39% nas suas emissões até 2020, por ocasião da COP-15 em Copenhague.

O Brasil arcaico afunda essa meta propondo medidas que, segundo os professores Jean-Paul Metzger da Universidade de São Paulo (USP), e Thomas Lewinsohn, da Universidade de São Paulo (Unicamp), poderão levar ao desmatamento de 70 milhões de hectares enquanto outros 40 milhões deixarão de ser recuperados.

Se confirmada essa previsão, as emissões brasileiras de gases do efeito-estufa terão um acréscimo de, por baixo, 25 bilhões de toneladas (31 bilhões no cenário mais pessimista). É uma façanha e tanto. Como vamos conseguir assumir essa posição de vanguarda do atraso?

Mata ciliar
Os limites legais para preservação da mata ciliar – nome dado à vegetação que ocorre nas margens dos rios – serão reduzidos se for aprovado o novo Código Florestal Brasileiro (foto: Pedro Biondi / CC 2.0 – BY-NC).

Poucos convivas

O banquete da devastação é uma longa série de iguarias. Citamos aqui apenas os principais quitutes. Como entrada, redução das áreas de preservação obrigatória às margens dos rios, que passarão a ser medidas a partir das bordas menores, quando os rios estão com o menor fluxo de água.

Imagine a diferença que isso vai representar em rios com bordas planas e enchentes sazonais! É a maior brecha para o desmatamento. Mas as matas ciliares dos rios menores não escaparão assim tão facilmente, já que aqueles com até 5 metros de largura terão sua área de proteção reduzida de 30 para 15 metros.

A sobremesa é a anistia para os responsáveis por desmatamento ilegal até 22 de julho de 2008

A seguir, um dos pratos principais: os proprietários de terras com até quatro módulos fiscais não precisarão recompor a vegetação devastada. A área do modulo fiscal varia de estado para estado, podendo chegar a 400 hectares na Amazônia.

E finalmente a gloriosa sobremesa, amarga para a nação e dulcérrima para os poucos beneficiados: anistia para os responsáveis por desmatamento ilegal até 22 de julho de 2008 e perdão das multas correspondentes, bastando para isso aderir a um certo Programa de Regularização Ambiental.

O governo deixará de arrecadar um bom dinheiro por conta das multas anistiadas. As estimativas variam em função do período contemplado ou de quem fez os cálculos – cerca de 8 bilhões de reais segundo o Greenpeace, ou R$ 10,6 bilhões nos cálculos do Ibama. Tudo é grande no Brasil, não é mesmo?

Se você paga suas multas de trânsito, seus impostos e taxas em dia, ou é um fazendeiro que cumpriu a lei nesse período, deve estar se sentindo um otário. E é de fato esta a mensagem: ignore a lei, vá infringindo até ela ser mudada e as dívidas, perdoadas.

Se você paga suas multas e impostos em dia, deve estar se sentindo um otário

Ora, direis, por que tanta indignação? Já vimos esse filme tantas vezes… No tempo em que o agronegócio brasileiro se reduzia aos usineiros do Nordeste, já era excelente negócio e prática corrente tomar empréstimos e não pagá-los, graças aos esforços de uma ativa bancada legislando em causa própria junto ao rei, imperador ou parlamento.

Extinção com alvará

Portanto, o novo código florestal nem é tão novo assim nos autores, nos métodos, nos efeitos. Os professores citados mais acima estimam, com base na área florestal perdida e no numero de espécies que vivem ali, que um grande número de espécies serão extintas, com autorização legal.

E eu que estava quase exultante com as notícias – de apenas alguns dias atrás – de que a Comunidade Europeia tomaria medidas duríssimas contra empresas que comprassem madeira que não tivesse origem comprovadamente legal… Querem legalidade? Tomem legalidade! Mais uma vez o mundo se curva diante do Brasil.

O agronegócio como trator
O agronegócio como trator: há séculos os grandes proprietários de terra no Brasil se beneficiam de decisões governamentais que nem sempre levam em conta o melhor para a sociedade ou o meio ambiente (foto: Flickr.com/izolan – CC 2.0 – BY-NC-SA).

Mais uma vez, fica caracterizada a vocação do agronegócio como trator. Um trator que avança sobre áreas nativas, deixando atrás de si um rastro de terras degradadas. Na última coluna, eu contava sobre um dado perturbador revelado sem querer em palestra do presidente da Embrapa: as áreas em exploração agrícola ou pecuária e as áreas já degradadas pelas mesmas atividades são da mesma ordem. E vamos em frente, matando a galinha dos ovos de ouro em nome de interesses paroquiais, imediatos e preguiçosos.

Aumentar a produção agrícola à custa da expansão da fronteira agrícola sobre novas áreas florestais é coisa de Brasil arcaico. Investir em tecnologia para aumentar a produção via maior produtividade é coisa de Brasil moderno, um exemplo de convívio possível – embora não predominante – entre esses dois Brasis. Ou será coisa de otário?

Os convivas do banquete querem confiar o galinheiro às raposas

Deve ser porque os convivas do banquete não estão satisfeitos. Querem ainda que estados e, sobretudo, municípios possam decidir sobre a redução de áreas de reserva legal e de áreas de proteção ambiental ao longo dos rios ou aprovar projetos de exploração madeireira nas reservas legais.

Desafios como esses são impossíveis para administrações que nem têm órgão ambiental ou pessoal capacitado para tal. E menos ainda independência em relação aos ruralistas locais, que são frequentemente os próprios prefeitos, secretários, vereadores. As raposas cuidando do galinheiro.

Em nível estadual, não haverá capacidade para avaliar a enxurrada de pedidos de alteração se o código for aprovado. Terão que acionar a indústria do carimbo ou colocar meio mundo na ilegalidade – até a próxima alteração dos critérios de legalidade.

E eu com isso?

A Amazônia e o Pantanal são regiões distantes. Por que devo me preocupar? Afinal, o dióxido de carbono é inodoro, como o dinheiro. Sobram motivos, como mais perturbação climática, mais rios secando, assoreando, provocando enchentes desastrosas, menor geração de hidreletricidade, mais calor ainda. Mais gastos e sofrimento, menos emprego, salário, água na torneira e lugares decentes onde viver.

O dióxido de carbono é inodoro, como o dinheiro

Ah, e eu já ia esquecendo, porque o cardápio é longo: você não sentirá apenas efeitos indiretos, embora dolorosos. Se você mora no litoral ou fora das regiões citadas acima, saiba que topos de morro, várzeas e restingas perderão qualquer proteção.

Guarde bem aquelas fotos das ultimas férias: em breve elas serão história.

Como gritaram vários parlamentares ao final da votação do relatório do deputado Aldo Rebelo, do PC do B, na Comissão Especial da Câmara: “Brasil! Brasil! Brasil!”

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro