Há pelo menos dois filmes que atendem pelo nome de Dom Quixote de Orson Welles. O primeiro, produzido entre 1957 e 1972, não chegou a ser montado, e se manteve apenas como projeto. O segundo Dom Quixote foi lançado em 1992, sete anos após a morte do diretor norte-americano, e hoje está disponível em DVD no Brasil. Ambos os filmes, o inacabado e o de 1992, revelam muito sobre a trajetória de um dos mais brilhantes e problemáticos artistas do modernismo norte-americano, que dirigiu sua obra-prima, Cidadão Kane, aos 25 anos.
Após a morte de Welles, em 1985, sua herdeira, Oja Kodar, procurou financiamento para seus vários projetos inacabados. Entre eles, havia várias latas e um copião do filme iniciado em 1957. Em 1990, o governo espanhol, autorizado por Kodar, contratou o diretor de pornoterror Jess Franco para montar o material. Hoje sabemos que, por razões judiciais, Franco trabalhou com cópias de segunda geração, e não com o negativo original, depositado em Roma.
Por isso, a qualidade de imagem é muito ruim, dando a impressão de ser um filme amador. Como Welles não completou a gravação das vozes (ele pretendia dublar todas – do narrador, de Sancho Pança e de Dom Quixote), Franco usou a voz de um ator para cobrir trechos sem voz, o que muitas vezes cria um efeito bizarro de falta de sincronia. O uso de fotografias, a música e as cenas do moinho de vento tampouco são ideias de Welles.
Foi de Welles, porém, a escolha do ex-revolucionário e ator espanhol Francisco Reiguera, que encarna como ninguém o personagem mais famoso da história da literatura. Ele contracena com Akim Tamiroff, amigo do diretor e um Sancho perfeito. Ambos acompanharam o sonho de Welles e com ele filmaram até morrer (Reiguera em 1969, Tamiroff em 1972). A morte dos atores foi, aliás, um dos motivos centrais do inacabamento de Dom Quixote.
A ideia central de Franco para o filme de 1992 foi mesclar imagens de Dom Quixote a imagens que o próprio Welles fez em um documentário rodado em 1961, Nella terra di Don Chicciote. Assim, o filme de 1992 parece uma mescla de ficção e documentário, inclusive com imagens do próprio Welles fazendo o filme sobre o romance de Miguel de Cervantes na Espanha. Por mais original e convincente que pareça, essa ideia não fazia parte dos planos de Welles: em cartas e documentos, ele afirma que não pretendia usar em Dom Quixote as cenas do documentário.
Por essas e outras razões, o filme atribuído a Orson Welles merece ser analisado como um produto híbrido, em que este é apenas parcialmente o autor, cabendo a outra parte da autoria a Jess Franco. Talvez seja melhor considerar o filme de 1992 como um documentário de Franco sobre o Dom Quixote de Welles.
O Dom Quixote de 1992 é marcado pela reflexividade, como apontou o norte-americano Robert Stam, no livro A literatura através do cinema. Reflexividade que não é alheia ao livro de Cervantes, que também usou dispositivos reflexivos: intromissões do narrador, mistura de níveis de narração, mistura de ficção e realidade. No romance aparecem muitas coisas que podem ser consideradas ‘documentais’. Isso justificaria o uso, por Franco, de cenas do documentário Nella terra di Don Chicciotte, mas isso também gerou um grave problema de qualidade de imagem, que não faz jus ao trabalho grandioso de Welles com a fotografia.
Confronto com a civilização moderna
O cerne do projeto inicial de Welles é o confronto de Quixote e Sancho com a civilização moderna. Numa das cenas mais belas do filme (disponível no YouTube, em baixa resolução), Dom Quixote entra numa sala de cinema e assiste a um filme épico. Ao ver uma pessoa indefesa sendo atacada, avança com a espada e desfaz a tela em pedaços diante de uma plateia aflita.
A cena inicial do filme inacabado foi rodada em 1957, no México: nela, o próprio Welles aparece contando a história a uma pequena turista norte-americana chamada Dulcie (Patty McCormack), e ambos discutem sobre ficção e realidade. Dulcie aparece na cena do cinema, ensinando Sancho Pança a se comportar no cinema. Em outras cenas, Sancho se depara com um aparelho de TV e Dom Quixote dá uma entrevista para a televisão.
O anacronismo dessas cenas faz parte da leitura que Welles fazia de Cervantes. Ele entendia que Quixote já era um personagem anacrônico no século 16, e a melhor coisa a fazer seria traduzir o anacronismo em termos modernos. Por outro lado, a cena da sala de cinema é uma crítica ao espetáculo ilusionista do cinema comercial, tal como o romance de Cervantes criticava o ilusionismo dos romances de cavalaria.
Se, um dia, as mais de 10 horas de gravações do original vierem à luz, será possível contemplar a magnitude do Dom Quixote de Orson Welles, que ele realizou com o próprio dinheiro ao longo de 30 anos, e que esperava terminar antes de morrer. Como Dom Quixote, Welles lutou contra todos os monstros e gigantes do cinema, que não são moinhos de vento.
Adalberto Müller
Universidade Federal Fluminense
Universidade Yale (pesquisador visitante)
Texto originalmente publicado no sobreCultura 15.