Como o resto dos animais domésticos, os cachorros surgiram por manipulação de populações silvestres. Embora até há algumas décadas se pensasse que o processo teria sido iniciado de modo intencional e unilateral pelos humanos, com o objetivo de obter um animal para defesa, um ajudante de caça ou um bicho de estimação, hoje muitos cientistas defendem que o processo foi mais complexo e que consistiu em uma coevolução de canídeos e humanos. Os mesmos canídeos poderiam ter desencadeado o processo, possivelmente com a crescente aproximação de matilhas silvestres em busca de alimento aos assentamentos e sítios de caça de grupos humanos.

Há milhares de anos, humanos e canídeos (cachorros, lobos, raposas, coiotes, chacais e outros já extintos) mostraram forte atração recíproca e mantiveram intensas interações com facetas econômicas, sociais, religiosas e mesmo afetivas. Em alguns casos, os canídeos foram competidores ou inimigos dos humanos; em outros, transcenderam a animalidade para se integrar ao tecido social e ideológico das populações humanas. Adquiriram esse status quase humano tão frequente na sociedade moderna há milhares de anos, quando a interação entre os habitantes da atual Europa e os canídeos silvestres deu origem ao animal doméstico mais antigo e versátil: o cachorro. Isso marcou o nascimento da mais estreita e duradoura relação entre humanos e animais, e iniciou uma rápida expansão geográfica dos cachorros.

O comportamento oportunista dos canídeos mais curiosos teria facilitado uma crescente familiarização com as pessoas, e favorecido a seleção genética natural dos indivíduos mais mansos e sociáveis. Ao mesmo tempo, teria se despertado o interesse dos humanos por esses animais e levado os primeiros a buscar acentuar a seleção reprodutiva dos canídeos mais sociáveis e, possivelmente, dotados de outros traços desejáveis, tanto físicos quanto de conduta. Independentemente de essa seleção ter sido intencional ou acidental, seus efeitos se acumularam ao longo do tempo, e as diferenças entre esses canídeos crescentemente domésticos e seus congêneres silvestres foram se acentuando.


Foto atual de um lobo-cinzento euroasiático (Canis lupus),
de cujos ancestrais descendem todos os cachorros. A grande
variedade deles é resultado de milênios de criação seletiva
pelos seres humanos.
(foto: Wikimedia Commons / Domínio público)

O tema segue aberto, com uma consequência importante. A opinião majoritária entre zoólogos, expressa no Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, não aceita como nomes científicos válidos aqueles dados a animais ‘criados’ por seleção sob controle humano. Isso significa rejeitar os que às vezes se aplicam aos cachorros (Canis familiaris ou Canis lupus familiaris). A hipótese da coevolução, no entanto, poderia enfraquecer essa rejeição e abrir a possibilidade de que os cachorros recebam como espécie um nome científico.

Outro tema de debate é quando e em que contexto apareceram os primeiros cachorros, e se todos se originaram um único processo de domesticação. Até o início do século 19, a explicação dominante indicava origens independentes em diferentes locais do mundo e a partir de diversos canídeos silvestres, como o lobo-cinzento (Canis lupus) e o chacal-dourado (Canis aureus) na Europa, e o coiote (Canis latrans) na América do Norte.

Mas recentes estudos anatômicos, de conduta e genéticos sugerem que o lobo-cinzento é o único progenitor de todos os cachorros atuais e que estes teriam se originado a partir de lobos europeus de maneira independente. Pesquisas com DNA nuclear, que avaliam essa única origem do cachorro, também sugerem que ele teria cruzado com o lobo durante o Holoceno (nos últimos 12 mil anos). Isso explicaria sua diversidade e por que se chegou a pensar em múltiplos ancestrais.

Os registros mais antigos de cachorros de que se tem notícia têm cerca de 15 mil anos e vêm da Europa Central. No entanto, considerando que o processo de domesticação foi longo e que dificilmente se encontrariam evidências de suas etapas iniciais, é razoável pensar em uma origem anterior a essa data, talvez uns 18 mil anos antes do presente.

O que chama a atenção é que nesse momento os grupos humanos eram basicamente caçadores-coletores, organizados em pequenos grupos nômades de várias famílias. Ainda não existiam sociedades organizadas em aldeias mais estáveis, onde surgiu o resto dos mais de 30 animais domésticos.  Isso dá sentido à ideia da coevolução de cachorros e humanos, porque explica melhor como o complexo processo da domesticação conseguiu se cristalizar apesar de as sociedades não poderem controlá-lo, dada a sua vida nômade.


Cronologia da dispersão dos cachorros pelo mundo. As cifras indicam milhares de anos antes do presente; todos os valores são aproximados, e o que aparece em vermelho mostra o lugar e o momento provável mais recente em que deve ter ocorrido sua domesticação a partir do lobo, cuja área natural de dispersão está em verde. Embora haja total concordância sobre o ancestral do cachorro, a diversidade de opiniões com relação ao lugar, ao momento e aos detalhes do processo de domesticação é grande.

Que os cachorros atuais descendam de uma única população ancestral de lobos não implica que não tenham ocorrido tentativas frustradas de domesticação de outras populações ou espécies. Parece ter havido domesticações malsucedidas na Bélgica e na Rússia há mais de 25 mil anos. Estudos recentes de DNA sugerem que na Terra do Fogo (Argentina) pode ter se originado um cachorro local entre os últimos povos canoeiros, a partir da domesticação de populações locais de raposa-colorada (Lycalopex culpaeus). Mas é uma conclusão tirada de uma única pele, da qual não se têm dados fidedignos sobre sua procedência.

Tudo parece indicar, então, que os cachorros atuais se originaram no que hoje é a Europa central, e que dali se disseminaram com surpreendente velocidade pela maior parte da Eurásia, o Oriente próximo, a China e a Sibéria, o que não ocorreu com nenhum outro animal doméstico até épocas muito mais recentes. Seguiram depois seu itinerário expansivo e chegaram ao Japão, à África, ao Sudeste Asiático, à Austrália e América, incluindo o atual território argentino.

 

O cachorro na América

Cronistas e viajantes observaram – com certa surpresa – a presença de cachorros entre os indígenas americanos na fase inicial da colonização. Alguns defendem que os animais teriam sido trazidos pelos europeus e adotados pelos indígenas, enquanto outros atribuem sua presença na América – e, inclusive, sua domesticação local – à uma época anterior à chegada dos europeus.

Apesar da discordância inicial de opiniões, a ideia de que existiram cachorros na América em tempos pré-colombianos tornou-se dominante no século 19. Aparentemente, os cachorros apareceram primeiro na América do Norte e depois na América do Sul – o que reitera a teoria de que o povoamento humano teria ocorrido também do norte para o sul. Também não está claro o lugar que ocuparam os cachorros nas esferas econômica, simbólica e religiosa das sociedades americanas.


Vasilha mexicana da cultura Colima (200 a.C. a 500 d.C.).
(foto: Walters Art Museum / Domínio público)

É provável que os cachorros tenham entrado em companhia de alguns dos imigrantes que chegaram ao continente americano entre 16 mil e 11,5 mil anos atrás, embora os primeiros registros arqueológicos encontrados no hemisfério Norte sejam mais modernos (entre 10 mil e 9 mil anos atrás).

Depois de vários milênios, a presença de cachorros tornou-se comum na região que vai desde o atual território do Canadá até o do México, tanto entre os grupos de caçadores-pescadores do Ártico quanto nas complexas sociedades da bacia do Mississippi, do México e da América Central.

A arqueologia e a etno-história têm registrado diversos usos dos cachorros: serviam de alimento e na guerra, aproveitavam-se suas peles, eram animais de defesa, caça, companhia e até carga, além de terem funções rituais. A seleção de características desejáveis para distintos fins levou ao surgimento de várias raças, entre elas as dos cachorros criados por sua lã pelos caçadores-pescadores da atual Colúmbia Britânica, as dos grandes cachorros empregados pelos caçadores de bisões das planícies norte-americanas para carga e tração em carros deslizantes, as dos cachorros dos esquimós utilizados para transporte e caça no Ártico, e as dos cachorros xoloitzcuintle, ou pelones (sem pelo), e tlalchichi (antecessores dos atuais chi-huahuas) do México, que eram animais de companhia, alimento e oferendas rituais.

O conhecimento sobre os cachorros pré-colombianos na América do Sul é bastante fragmentário.  São duvidosas as provas de sua presença.  Na região andina, desde o Equador até o norte do Chile, e especialmente no Peru, há numerosos dados, mas não superam os 5 mil anos de antiguidade. Ali, os cachorros foram, sobretudo, animais de companhia, possivelmente auxiliares de pastoreio e parte importante de ritos, cerimônias e acontecimentos funerários, em sociedades que praticavam a agricultura e o pastoreio de camelídeos e estavam organizadas em hierarquias sociais hereditárias.

À luz das ponderações anteriores e de estudos recentes feitos pelos autores deste artigo, sugerimos que a generalização tardia de cachorros na América do Sul pôde ter resultado de relações entre as sociedades agrícolas do México e dos Andes.

Cachorro xoloitzcuintle ou pelón mexicano.
(foto: Alex Cearns, cortesia de www.xoloaus.com)

Há vários registros da presença de cachorros no atual noroeste argentino, conhecidos desde a publicação do trabalho clássico de Ángel Cabrera citado nas ‘sugestões de leitura’. Os achados provêm de diferentes sítios arqueológicos das províncias de Jujuy, Salta e Catamarca (Casabindo, Tilcara, Humahuaca, Tastil, Hualfín e Andalgalá, entre outros) e correspondem, principalmente, a esqueletos e múmias.

Os cachorros foram enterrados intencionalmente de um modo similar aos humanos, e seus restos foram datados nos séculos 15 e 16, em tempos de domínio inca; ou seja, são mais tardios que os primeiros registros similares nos Andes Centrais e avalizam a hipótese da dispersão dos animais do norte para o sul entre as sociedades andinas.

As evidências mais antigas de cachorros em outras regiões sul-americanas provêm do atual Uruguai, onde também se encontraram restos enterrados intencionalmente faz mais de 2 mil anos – a maioria junto a corpos humanos  – emuns  montículos  conhecidos  como ‘cerritos de índios’, de caçadores-coletores, que  também cultivavam em pequena escala. Alguns estudos desses restos apontaram semelhanças com os cachorros pelones do Peru, o que implicaria uma conexão com a região andina; possivelmente, contatos entre as sociedades que habitavam ambas as regiões.

No resto da América do Sul, há muito poucas evidências capazes de validar a hipótese de uma presença pré-colombiana de cachorros. Embora não haja achados arqueológicos na bacia do rio Amazonas, existe abundante informação etno-histórica (observações precoces de cachorros) e linguística (existência de diversos vocábulos de línguas nativas para se referir a eles) que sugere uma história longa na região.

 

Cachorros pré-colombianos nos Pampas e na Patagônia

Tradicionalmente, acreditava-se que os indígenas dos Pampas e da Patagônia só conheceram os cachorros com a chegada dos europeus.  Mas, entre o início do século 20 e a década de 1980, acumularam-se evidências a favor da hipótese de que os primeiros povoadores do extremo sul da América teriam chegado – há pouco mais de 10 mil anos – acompanhados por cachorros. Entre essas evidências, é possível mencionar os restos achados nas cavernas Fell (entre 10,7 mil e8,4 mil anos atrás) e Eberhardt, no sul do Chile; e os encontrados nos sítios Los Toldos (na província argentina de Santa Cruz) e Río Luján (na província de Buenos Aires).


Restos de um menino (à esquerda) enterrado com um cachorro
há cerca de 900 anos, em La Pampa (Argentina).
(foto: Sítio Arqueológico Chenque 1,  Parque Nacional Lihuel Calel)

Entretanto, os que pareciam ser restos de cachorros acabaram correspondendo a canídeos silvestres, sobretudo a Dusicyon avus, uma raposa autóctone extinta na região há menos de500 anos. Algumas de suas características anatômicas (tamanho grande, mandíbula robusta com grandes molares) eram similares às do cachorro e explicam a confusão.

No fim dos anos 1980, as evidências haviam sido contestadas e, no seu lugar, reinava uma atmosfera de incerteza, que manteve o tema fora de debate por mais de duas décadas. Isso mudou a partir de 2010, quando se revelaram novos achados de cachorros em sítios arqueológicos pré-históricos na Argentina no vale do rio Negro, no Parque Nacional Lihuel Calel e no delta inferior do rio Paraná, datados em torno de 900 anos antes do presente.

No primeiro sítio, só se encontraram algumas peças dentárias caninas entre restos de comida de um acampamento, e, no último, foi achado o que se interpretou como um enterro intencional de um cachorro, mas não foi divulgada suficiente informação sobre sua posição e sobre como se relaciona com os restos humanos encontrados no mesmo lugar.

O achado mais interessante é o Chenque 1: a tumba de uma criança e um cachorro cujo contexto sugere que era um animal de companhia – era prática comum em povos pré-históricos sacrificar mascotes e enterrá-las com seus donos. O menino ocupava, possivelmente, uma posição de hierarquia social, porque é a única criança desse cemitério sepultada com um valioso enxoval funerário, que inclui moluscos marinhos e diversos adornos corporais. Por outro lado, a posição do menino e do cachorro, cuidadosamente colocados um frente ao outro, o animal com suas quatro patas sobre o garoto, faz pensar num ritual mortuário que buscou perpetuar o vínculo entre ambos.

 

Poucas certezas, muitas perguntas

Deste percurso rápido pela história dos cachorros, resultam poucas certezas e várias perguntas. Acreditamos hoje que esses animais apareceram há mais de 18 mil anos, possivelmente, na Europa Central, depois de um processo complexo de interação entre seres humanos e alcateias (grupos de lobos). Não apenas foi o primeiro animal doméstico: foi o único capaz de acompanhar os humanos em cada rincão habitável do planeta. Entraram na América com os humanos e adquiriram grande diversidade de características anatômicas e de comportamento que lhes permitiram exercer variadas funções econômicas, sociais e simbólicas, tanto entre grupos de caçadores-coletores, quanto em sociedades com organização mais complexa.


Mulher de etnia dacota, dos prados norte-americanos, com um cachorro que arrasta o dispositivo chamado travois.
(foto: State Historical Society of North Dakota, catálogo Shsnd 1952-6303-2)

Na América do Sul, apesar da informação escassa e fragmentária, pode-se, pelo menos provisoriamente, pensar que seu processo de dispersão aconteceu alguns milênios depois do que na América do Norte, pelos contatos entre as sociedades aldeãs mesoamericanas e as andinas não antes de 5 mil anos atrás. É possível que os cachorros tenham se juntado aos grupos de caçadores-coletores dos Pampas e da Patagônia a partir de 1,5 mil anos antes do presente, quando se intensificou a circulação de pessoas, bens e ideias por longas distâncias.

Ainda ficam sem respostas questões como por que os cachorros aparecem tão pouco no registro arqueológico do sul do continente, e se eles desempenharam algum papel importante fora da esfera simbólica, por exemplo, como cachorros de caça, defesa ou ataque.

Muito além das perguntas ainda em aberto, da longa e complexa história de relações entre canídeos e humanos emerge com clareza o fato de que a chegada dos cachorros mudou de modo formidável e definitivo o futuro de ambas as espécies.

 

Sugestões para leitura

CABRERA Al, 1934, ‘Los perros domésticos de los indígenas del territorio argentino’, Actas y Trabajos científicos del XXV Congreso Internacional de Americanistas, t. 1, pp. 81-93, Coni, Buenos Aires.

CROCKFORD SJ, 2000, Dogs Through Time: An archaeological perspective, Archaeopress, Oxford.

LARSON G et al., 2012, ‘Rethinking dog domestication be integrating genetics, archeology and biogeography’. Proceedings of the National Academy of Sciences, 1-8. doi:10.1073/pnas.1203005109.

MARTLN FM, 2013, Tafonomía y paleoecología de la transición Pleistoceno-Holoceno en FuegoPatagonia, Ediciones de la Universidad de Magallanes, Punta Arenas.

PRATES L, PREVOSTI F y BERÓN M, 2010, ‘Los perros prehispánicos del cono sur. tendencias y nuevos registros’, en Berón M et al., Mamül Mapu. Pasado y presente desde la arqueología pampeana, pp. 215-228, Libros del Espinillo, Ayacucho.

(Artigo originalmente publicado na revista argentina Ciencia Hoy.)

 

Mónica Berón
Museu Etnográfico Juan B. Ambrosetti
Universidade de Buenos Aires (Argentina)

Luciano Prates
Faculdade de Ciências Naturais e Museu
Universidade Nacional de La Plata (Argentina)

Francisco Prevosti
Centro Regional de Pesquisas Científicas e Transferência Tecnológica de Anillaco, Conicet (Argentina)

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