Vivemos um momento com grandes avanços tecnológicos e muitas pesquisas sobre exploração espacial. Em paralelo, passamos por uma grande revolução científica relacionada à relevância da microbiologia para a vida como a conhecemos na Terra. A cada dia, novas descobertas confirmam e ampliam nosso conhecimento sobre a importância dos microrganismos para a manutenção de todas as formas de vida em nosso planeta.
Os microrganismos têm participação ativa em todos os grandes ciclos biogeoquímicos e fazem parte do microbioma (a coleção de microrganismos) de praticamente todas as plantas e animais, incluindo o ser humano. Diversos estudos e novas evidências destacam a relação do microbioma humano com nossa saúde, nosso bem-estar e também com diversas doenças, como diabetes, alguns tipos de câncer, enfermidades degenerativas, obesidade, depressão, entre outras.
Em relação à conquista espacial, a maior parte da comunidade científica concorda com a necessidade de se evitar a contaminação microbiana de corpos planetários, como, por exemplo, Marte. As agências espaciais norte-americana (Nasa) e europeia (ESA), a Administração Espacial Nacional da China e outras entidades afins esterilizam os seus equipamentos, seguindo protocolos cuidadosos e muito dispendiosos, antes de lançá-los em suas missões de exploração.
Existe uma filosofia para proteção planetária (PP), que remonta ao final da década de 1950 e ao estabelecimento do Comitê de Pesquisa Espacial (Cospar), criado pelo Conselho Internacional de Sindicatos Científicos. Cabe ao Cospar, entre outras funções, formular recomendações e protocolos para proteger o espaço dos nossos micróbios.
De maneira semelhante, o Tratado sobre princípios reguladores das atividades dos estados na exploração e uso do espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, das Nações Unidas (ONU), que foi assinado por mais de 100 nações (incluindo o Brasil), declara em seu Artigo IX que: “No que concerne à exploração e ao uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, os estados-partes do Tratado deverão fundamentar-se sobre os princípios da cooperação e de assistência mútua e exercerão as suas atividades no espaço cósmico, inclusive na Lua e demais corpos celestes, levando devidamente em conta os interesses correspondentes dos demais estados-partes do Tratado. Os estados partes do Tratado farão o estudo do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, e procederão à exploração de maneira a evitar os efeitos prejudiciais de sua contaminação, assim como as modificações nocivas no meio ambiente da Terra, resultantes da introdução de substâncias extraterrestres, e, quando necessário, tomarão as medidas apropriadas para este fim. Se um estado-parte do Tratado tem razões para crer que uma atividade ou experiência realizada por ele mesmo ou por seus nacionais no espaço cósmico, inclusive na Lua e demais corpos celestes, criaria um obstáculo capaz de prejudicar as atividades dos demais estados-partes do Tratado em matéria de exploração e utilização pacífica do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverá fazer as consultas internacionais adequadas antes de empreender a referida atividade ou experiência. Qualquer estado-parte do Tratado que tenha razões para crer que uma experiência ou atividade realizada por outro estado-parte do Tratado no espaço cósmico, inclusive na Lua e demais corpos celestes, criaria um obstáculo capaz de prejudicar as atividades exercidas em matéria de exploração e utilização pacífica do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, poderá solicitar a realização de consultas relativas à referida atividade ou experiência”.
A lógica principal por trás desses pensamentos é que os microrganismos têm o potencial de contaminar lugares cientificamente importantes no sistema solar, e isso iria prejudicar a nossa capacidade de detectar qualquer forma de vida microbiana originária em Marte e outros corpos celestes. O que se teme é que a forma de vida terráquea invasora possa destruir um ecossistema alienígena antes de conseguirmos estudá-lo.
Essas medidas têm sido importantes e não duvidamos de que todo cuidado deve ser adotado em relação ao que ainda não conhecemos bem. Entretanto, os conhecimentos e técnicas usados em microbiologia avançaram a uma velocidade impressionante nas últimas décadas. É preciso um olhar diferente com base nos novos dados científicos.
‘Esterilizar’, em sentido biológico, significa a eliminação completa de todos os organismos vivos, incluindo micróbios, seus esporos, formas vegetativas e vírus. A esterilização tem o mérito de limitar potenciais riscos de contaminação que a exploração espacial poderia oferecer a um ambiente extraterrestre. No entanto, existem grandes falhas nessa abordagem inicial que exigem correção e ajustes.
Em primeiro lugar, a obsessão por controlar micróbios no espaço não é muito prática, pois eles são componentes essenciais para a vida, e a maioria dos micróbios é reconhecidamente benéfica e não patogênica. Em segundo lugar, parece desnecessário, caro e fútil lutar pela esterilidade completa de todos os cantos de todas as naves espaciais em todas as missões. Micróbios vivem (ou sobrevivem) em praticamente quase todos os lugares, desde a litosfera até partículas de poeira na estratosfera. Terceiro, mesmo supondo que o lançamento de naves espaciais totalmente estéreis fosse possível, ainda assim não poderemos esterilizar a tripulação humana, eliminando todos os seus microrganismos. Na verdade, os seres humanos e a maioria dos indivíduos eucariotos vivos devem ser vistos como ‘metaorganismos’, isto é, compostos pelo hospedeiro e por seu microbioma associado.
inda precisamos entender melhor a diversidade microbiana e a ocupação de nichos por micróbios que vivem dentro de nossos corpos.
Além dos avanços na exploração do espaço, as agências espaciais de diversos países concordam que a próxima etapa será a provável colonização de outros planetas (ou luas) visando futuramente ao estabelecimento de colônias humanas. Alguns bilionários, como Elon Musk (dono da Tesla Motors, entre outras empresas) e Jeff Bezos (criador e dono da Amazon, entre outras), lançaram projetos independentes com diferentes visões para o futuro da humanidade no espaço.
Musk é o fundador da SpaceX, que pretende enviar pessoas a Marte, estabelecer uma cidade autossustentável por lá e usar o planeta vermelho como base para explorar ainda mais o sistema solar. Por outro lado, Bezos possui a Blue Origin, empresa de foguetes, e pretende colocar uma base permanente na Lua, construir enormes colônias espaciais para, eventualmente, ter 1 trilhão de pessoas vivendo e trabalhando no espaço.
O problema com a política antiga é que uma dicotomia tácita entre exploração e colonização não foi reconhecida. Nós acreditamos que é hora de diferenciar claramente a intenção da sociedade quanto a apenas continuar explorando o espaço ou de se comprometer com a colonização extraterrestre. No presente contexto, afirmamos que a humanidade está em um ponto em que se pode discutir racionalmente se a fase inicial de ‘exploração’ das viagens espaciais no nosso sistema solar poderá ser em breve substituída por esforços deliberados de colonização extraterrestre com todas as suas implicações. Essa meta deve ser bem definida pela sociedade, com um forte embasamento científico e ético.
Aparentemente, a nova abordagem escolhida pelas agências espaciais tem uma forte perspectiva de acatar projetos que almejam a colonização espacial. Se essa nova estratégia for realmente levada a sério, o conceito de ‘terraformação’ (a prática hipotética de geoengenharia de um planeta para torná-lo mais parecido com a Terra, especialmente para que possa suportar a vida humana/terrestre) deverá ser amplamente discutido.
Até o momento, apenas poucos trabalhos acadêmicos consideraram essa atividade com rigor científico, e a utilização de microbiomas tem sido abordada, em nossa opinião, de maneira ainda muito tímida pelas agências espaciais. Se o objetivo das agências espaciais e de grupos bilionários é realmente colonizar o espaço, é fundamental e essencial que os microrganismos sejam de fato incluídos nessa equação. Esse exercício envolverá a identificação e introdução deliberada ou aleatória de micróbios benéficos, desejáveis, precedidos de muitos estudos, simulações e testes usando micro e mesocosmos.
Com base na microbiologia moderna, propomos uma grande revisão na filosofia atual de exploração espacial e na política de proteção planetária, especialmente no que diz respeito aos microrganismos no espaço. A contaminação microbiana não deve ser considerada acidental, mas inevitável. Nossa hipótese é que será virtualmente impossível explorar novos planetas sem transportar e/ou introduzir nenhum viajante microbiano.
Reconhecemos a importância de se continuar a controlar e rastrear tais contaminações (o que permitirá, por exemplo, explorar a existência de microrganismos extraterrestres), mas também enfatizamos a importância de se discutir seriamente o papel dos micróbios como possíveis colonizadores primários para futuros planos de colonizações extraterrestres, e não apenas considerar as eventuais contaminações como acidentes ao acaso.
Em um artigo de opinião publicado no periódico FEMS Microbiology Ecology (J.V. Lopez, R.S. Peixoto & A. Rosado) em 2019, levantamos a hipótese de que será praticamente impossível impedir que os microrganismos dos terráqueos invadam os lugares que pretendemos explorar, e, na verdade, devemos ter uma discussão racional sobre como usar os microrganismos da melhor maneira possível. Especificamente, nos referimos à perspectiva de Terraformação com um enfoque proativo.
Na Terra, os microrganismos são essenciais para muitos dos processos que sustentam a vida, como decomposição e digestão – e até a formação do clima na Terra. Acreditamos que os microrganismos que vivem em ambientes considerados extremos no nosso planeta (fontes hidrotermais, regiões profundas do subsolo, Antártica etc.), conhecidos como extremófilos, seriam candidatos ideais para a organização de inóculos microbianos que, no futuro, pudessem deliberadamente iniciar a criação de condições mais favoráveis à potencial colonização humana em outros mundos.
Essa mudança de paradigma decorre em parte da evidência esmagadora dos diversos papéis dos microrganismos na manutenção da vida na Terra, como simbioses e serviços ecossistêmicos. Portanto, propomos não uma liberação descontrolada de microrganismos no espaço, mas uma nova linha de raciocínio filosófica que deverá proporcionar uma nova discussão com base nas implicações científicas das futuras colonizações e da Terraformação. Essa discussão deve ter: (i) enfoque em métodos para rastrear e evitar a introdução acidental de microrganismos e genes nocivos da Terra para áreas extraterrestres; (ii) propostas para o inicio de um programa rigoroso para configurar e empregar ‘Protocolos proativos de inoculação’ (PIP).
Com uma infinidade de novas descobertas na microbiologia, e considerando o inevitável transporte de organismos microbianos em naves espaciais, enfatizamos que uma nova atitude em relação ao espaço deve se basear em princípios evolutivos e microbiológicos e história da Terra – deixemos que os micróbios façam o trabalho. Obviamente serão ainda necessários muitos estudos controlados e uma grande discussão sobre conceitos éticos, antes dos lançamentos planejados.
Como sabemos que pelo menos um bilhão de anos (talvez menos) pode ter sido necessário para a vida primordial surgir neste planeta, devemos considerar os melhores métodos para iniciar os PIPs de maneira sistemática e com base cientifica, além de encontrar maneiras de manipular microrganismos benéficos. Isso poderia acelerar os processos de transformação natural e a eventual formação de ambiente mais similar ao da Terra. Se a humanidade realmente pretende colonizar nosso sistema solar, os microrganismos deverão abrir e pavimentar esse caminho.
Alexandre Soares Rosado
Instituto de Microbiologia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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