No princípio era o cérebro. E logo vieram as tentativas de entendê-lo. Já que nosso órgão de pensamento é possivelmente o objeto mais complexo do universo conhecido, o paradoxo é que entender o cérebro não deixa de nos dar dores de cabeça. Calcula-se que o cérebro humano tenha em torno de 86 milhões de neurônios e, é óbvio, muitas mais conexões e circuitos entre eles. Conhecer cada um desses neurônios e suas circunstâncias, seguir seus passos e identificar suas conversas parece, por enquanto, tarefa impossível.
Por que, então, não fazer um modelo digital desse cérebro, em supercomputadores, de modo a simular seu funcionamento, sua resposta a fármacos ou o efeito de enfermidades? É esse o objetivo do Projeto Cérebro Humano (HBP, na sigla em inglês), lançado em 2013 na Suíça e financiado pela União Europeia. Muito financiado: cerca de 1,2 bilhão de euros, divididos entre diversas instituições de pesquisa.
Convencidos de que a tarefa era, no mínimo, ciclópica, os pesquisadores começaram, mais modestamente, propondo modelos para ratos e já estão divulgando fiozinhos (digitais) coloridos pelo mundo. O problema, para muitos cientistas, é o próprio projeto – são mais do que fios coloridos –, pois talvez seja prematuro demais propor um projeto com essas características.
Do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos também têm seu projeto de mapeamento cerebral, pomposamente chamado Iniciativa Brain (Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies). Lançado pelo presidente Barack Obama em 2013, o projeto pretende revelar a atividade real de cada um dos neurônios do cérebro humano, o que levaria ao menos 10 anos. Chegará a vez dele, mas quem está mergulhado em polêmicas por enquanto é o programa europeu.
De fato, feito o projeto, feita a controvérsia: já desde o início houve vozes dissidentes acerca dos objetivos do HBP, que, segundo alegavam, se apresentava como um projeto de neurociências quando, na verdade, se tratava de um esforço computacional de duvidosa aplicação. Culminou com uma carta pública, assinada por cerca de 130 neurocientistas que se queixaram abertamente não apenas da pesquisa, mas também – e sobretudo – da forma como as decisões são tomadas e da governabilidade do projeto. Mostraram preocupação especial com a relativa falta de interesse por temas de neurociência cognitiva (consciência, pensamento e outros). Mais ainda: mostraram-se dispostos a boicotar o HBP e a convencer a União Europeia de que estava jogando dinheiro fora. Pediram uma revisão completa do projeto e, possivelmente, uma intervenção maior na forma de encarar as pesquisas.
Os defensores argumentam que o objetivo não é a pesquisa básica em neurociências, mas o desenvolvimento de tecnologias de informação que permitam entender a enorme quantidade de dados resultantes das pesquisas que buscam conhecer o cérebro. Em resposta oficial, a HBP pediu um pouco mais de tempo para poder avaliar melhor a iniciativa – afinal, a simulação leva menos de um ano – e prometeu informes anuais que, de fato, deem conta dos avanços que vêm sendo obtidos.
Enquanto isso, vão se acumulando as assinaturas contra o HBP: já são 800 que pedem transparência e prestação de contas. O mesmo projeto chegou a propor, ironicamente, que se faça uma petição em seu apoio; ou seja, declarou-se uma verdadeira guerra de assinaturas. Enquanto isso, nosso cérebro espera paciente para ser desvendado.
Diego A. Golombek
Universidade Nacional de Quilmes (Argentina)
Pesquisador principal do Conicet
Texto originalmente publicado na edição 141 (outubro-novembro/2014) da revista argentina Ciencia Hoy e republicado na CH 324 (abril de 2015). Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista CH.