No lucrativo mercado da ciência aberta, quem paga a conta?

O modelo de publicação de artigos científicos vem passando por uma revolução nos últimos anos devido à implementação de políticas para liberar o acesso gratuito e livre a esses conteúdos. Os custos de publicação deste novo modelo, no entanto, não são regulados pelo mercado, são cobertos pelos próprios cientistas que produzem o conhecimento e atingiram valores exorbitantes. Quais implicações para a comunidade científica dessa transformação? Que medidas devem ser tomadas para tornar essas publicações mais inclusivas?

CRÉDITO: BIBLIOTECA DE ASSURBANIPAL, MESOPOTÂMIA 1500-539 AC / WIKIMEDIA
COMMONS

Desde os primórdios da humanidade, todo conhecimento gerado por meio de descobertas científicas foi disseminado de alguma maneira, seja oralmente, por demonstração prática ou textos escritos. Mas, até o advento da escrita, os registros do conhecimento científico eram esparsos. Apesar de não haver certeza de quais foram os primeiros registros científicos escritos, textos oriundos de tábuas médicas cuneiformes da biblioteca do Rei neo-assírio Ashurbanipal  datadas do século 7 a.C. estão entre os mais antigos. Estas e outras tábuas do mesmo período contêm descrições detalhadas dos diagnósticos de inúmeras doenças, como artrite, verminoses e câncer. Posteriormente, o filósofo persa Avicena (980-1037) registrou suas contribuições científicas em livros, utilizados por séculos. Foi após o desenvolvimento da imprensa mecanizada pelo alemão Johannes Gutenberg (1400-1468) que as publicações científicas modernas surgiram. O ano de 1665 foi um marco com o lançamento, quase simultâneo, de duas revistas, o Journal de Sçavans, na França, e o Philosophical Transactions of the Royal Society, na Inglaterra.

 

O artigo científico

As descobertas científicas são divulgadas por meio de textos técnicos chamados artigos científicos, que podem ser de diversos tipos: se os autores fazem a descrição de uma nova descoberta, o trabalho é publicado como ‘artigo original’; já os textos que fazem levantamento teórico detalhado sobre um determinado assunto são os artigos de revisão; e existem ainda os artigos de hipótese, de conteúdo mais teórico, com base em informações na literatura científica. Independentemente do tipo, artigos têm sempre linguagem peculiar e são estruturados em seções definidas, nas quais são feitas uma descrição detalhada do problema a ser estudado, como foi estudado, quais as descobertas e as implicações desse novo conhecimento para o mundo.

Antes de um artigo ser aprovado para publicação, passa por uma análise criteriosa de outros cientistas, a avaliação pelos pares. Embora cada revista tenha sua política de avaliação, os trabalhos são normalmente revisados de forma anônima. Primeiramente, o revisor (normalmente de dois a quatro cientistas) deve decidir se o artigo tem condições de ser publicado ou não. Se o artigo não for rejeitado de início, são encaminhados comentários dos revisores aos autores para que sejam feitas modificações, que podem ser mais simples ou profundas. A versão revisada segue para o editor da revista e os revisores para nova avaliação, num processo demorado, que exige grande dedicação dos envolvidos e pode se repetir várias vezes até o aceite para publicação. Por isso, artigos científicos representam a produção mais importante da carreira de um pesquisador e são extremamente valorizados na academia.


ARTIGOS CIENTÍFICOS REPRESENTAM A PRODUÇÃO MAISIMPORTANTE DA CARREIRA DE UM PESQUISADOR E SÃO EXTREMAMENTE VALORIZADOS NA ACADEMIA

Acesso caro

Até o início do século 21, o conhecimento disponibilizado por revistas era pouco acessível à sociedade. O conteúdo dos periódicos era restrito aos que podiam pagar por assinaturas. Inicialmente, as sociedades científicas, que geralmente editavam as suas próprias revistas, abordavam todas as áreas do conhecimento. Com a expansão da produção científica, mais periódicos surgiram e se especializaram nos mais diversos campos. Fazer assinatura individual para toda essa quantidade de revistas tornou- se inatingível.

Hoje, universidades e centros de pesquisa pagam taxas anuais às grandes editoras para fornecer o acesso às publicações científicas. Embora bibliotecas universitárias sejam normalmente de acesso público, esses espaços não são capazes de fornecer acesso a toda a população potencialmente interessada.

Qual o custo atual desse sistema? Para termos uma ideia, a Universidade da Califórnia (EUA) pagava anualmente uma taxa de aproximadamente R$ 56 milhões para cobrir os custos de assinatura dos periódicos da Elsevier, o maior grupo editorial científico do mundo. O governo brasileiro, por sua vez, gastou, apenas em 2020, cerca de R$ 323 milhões para prover acesso através dos Periódicos Capes, um portal que disponibiliza o acesso a milhares de periódicos científicos para as instituições de ensino e pesquisa de forma gratuita.

As cifras são exorbitantes? Sim, e há uma razão para isso. O mercado das publicações científicas é um oligopólio e não sofre qualquer tipo de regulação. Importante destacar que a informação científica é um insumo essencial para qualquer estrutura de pesquisa. Assim, o mercado editorial de ciência tornou-se um dos mais rentáveis dentre todas as atividades econômicas. Em 2010 o grupo Elsevier registrou no seu relatório financeiro um lucro de R$ 5,1 bilhões a partir de uma receita de R$ 14 bilhões (cifras equivalentes ao câmbio de 2022). Conclui-se, assim, que o percentual de lucro obtido em função da receita (margem de lucro) do grupo naquele ano foi da ordem de 36%. Em 2020 os números não mudaram muito, já que a margem de lucro da editora foi de aproximadamente 38%. Parece pouco? Vamos comparar com empresas bastante conhecidas de outras áreas. A montadora de carros japonesa Toyota, em 2020, declarou uma margem de lucro de aproximadamente 10%, enquanto a Amazon registrou um valor próximo de 3,8%. O modelo de exploração comercial das publicações científicas, portanto, tornou-se um negócio altamente lucrativo, sem disponibilizar de maneira ampla todo o seu conteúdo. Essa realidade levou a comunidade científica a propor um novo modelo de publicação mais acessível a todos.

Margens de lucro do grupo editorial Elsevier comparado ao do Bank of America, Toyota e Walmart ADAPTADO DE HTTPS://PAYWALLTHEMOVIE.COM/PAYWALL

O MERCADO DAS PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS É UM OLIGOPÓLIO E NÃO SOFRE QUALQUER TIPO DE REGULAÇÃO

A exploração do acesso aberto

Em 2002, surgiu com força o movimento de acesso aberto, que marca o começo de uma revolução da cultura de publicações científicas. O objetivo era tornar o conhecimento científico público totalmente aberto, sem qualquer tipo de restrição de acesso ou custo para os leitores. O direito ao livre acesso para leitura de textos científicos é quase que universalmente aceito entre acadêmicos, considerando que se trata de conhecimento gerado principalmente por investimento público em pesquisa científica básica.


O DIREITO AO LIVRE ACESSO PARA LEITURA DE TEXTOS CIENTÍFICOS É QUASE QUE UNIVERSALMENTE ACEITO ENTRE ACADÊMICOS, CONSIDERANDO QUE SE TRATA DE CONHECIMENTO GERADO PRINCIPALMENTE POR INVESTIMENTO PÚBLICO EM PESQUISA CIENTÍFICA BÁSICA

Atualmente existem cinco “vias” de publicação de um artigo científico no formato de acesso aberto. O mais adotado é o modelo chamado ‘via dourada’ (golden access), no qual os manuscritos são disponibilizados imediata e gratuitamente para qualquer pessoa. Neste modelo, os autores devem pagar as chamadas ‘taxas de processamento de artigos’ (Article Processing Charges, APC, na sigla em inglês). Os autores, que produziram o conhecimento e redigiram os trabalhos, pagam os custos de publicação, numa reversão completa da forma em que o mercado editorial opera (pagando aos autores pelo conteúdo gerado, e cobrando do leitor). Essa é uma mudança significativa também no mercado editorial científico: em vez de instituições de pesquisa assumirem os custos de publicação, a conta é paga pelos autores.

Outros modelos de publicação com acesso aberto também existem. Chamados de vias ‘verde’, ‘diamante’, ‘bronze’ e ‘negro’, estes não necessariamente envolvem custos para publicação ou leitura, e outros gastos são cobertos de outra forma. Em alguns casos, os manuscritos só são disponibilizados livremente e gratuitamente após um embargo de alguns meses.

Independentemente do tipo de “via”, o modelo comercial de acesso aberto opera com baixo custo, porque as editoras não pagam os maiores custos e “insumos”, ou seja, o conteúdo, já que os autores que realizam as pesquisas redigem, editam e formatam os artigos. Com o advento da internet e a digitalização das publicações científicas, os custos de produção e distribuição diminuíram substancialmente, tendo relativamente pouco impacto nas receitas. Isto explica o lucro bastante elevado dos grupos editoriais, que agora ganham não só pelas assinaturas dos periódicos, mas também pelas altas taxas de APC das revistas de acesso aberto pela ‘via dourada’ (a média de custos em área biológica é de R$ 10 mil por artigo). Mas esses valores podem ser ainda maiores, como é o caso da prestigiada Nature e mais de 30 revistas do mesmo grupo, que cobram hoje em torno de R$ 56 mil por artigo publicado! Está longe de ser a única: a prestigiada revista Cell também cobra hoje mais de R$ 50 mil por artigo.

Mas por que as editoras cobram taxas tão altas? Segundo essas empresas, os custos internos de publicação são bastante altos e, por isso, devem ser cobertos com a cobrança de APCs. A justificativa, no entanto, não se prova porque são os pesquisadores que produzem e checam a qualidade dos trabalhos de forma totalmente voluntária – estimativas independentes indicam que, mesmo mantendo margens de lucro de 30%, as atividades editoriais de revistas com alto grau de seletividade, como Nature e Cell, custam no máximo US$ 1 mil por artigo. A atividade de revisão voluntária realizada pelos pesquisadores representa a essência do processo de publicação, e o passo de maior valor agregado no processo de publicação, depois da produção da pesquisa e a sua redação no formato de um artigo. Sem eles, não teríamos as revistas científicas como elas existem hoje. Infelizmente, a ganância dos grupos editoriais parece não ter limites, e eles encontraram uma forma de ampliar ainda mais as suas elevadas margens de lucro.

Lucro absoluto e margens de lucro do grupo editorial Elsevier ao longo dos anos ADAPTADO DE HTTPS:// JOURNALS.PLOS.ORG/PLOSONE/ARTICLE?ID=10.1371/JOURNAL.PONE.0127502

O plano S

Em setembro de 2018, uma coalizão de agências de fomento a pesquisas internacionais lançou o chamado Plano S. Esta iniciativa se baseia em 10 princípios que propõem que todos os artigos financiados por essas agências sejam disponibilizados imediatamente e gratuitamente através das políticas de acesso aberto, logo após a publicação. Diversas agências de financiamento, especialmente na Europa, já implementaram as políticas do Plano S e obrigam os pesquisadores por elas financiados a publicar seus trabalhos por acesso aberto desde janeiro de 2021. Embora não haja nenhuma menção clara sobre qual o tipo de acesso aberto, percebemos que há uma clara intenção em obrigar os pesquisadores a publicarem os seus trabalhos em revistas de ‘via dourada’, ou seja, aquelas que cobram APCs.

O Plano S não prevê, por exemplo, a disponibilização de acesso aberto através de preprints, que são vias de publicação de trabalhos científicos que não passaram pelo processo de revisão pelos pares, deixando os trabalhos imediatamente disponíveis sem cobrar APCs. Além disso, a obrigatoriedade de publicação imediata do artigo impede que eles sejam disponibilizados em revistas da ‘via verde’, cujos textos são mantidos por um período de embargo de alguns meses, mas que também não cobram APCs. “No fundo, a intenção do Plano S , em determinados momentos, não parece ser a disponibilização do conhecimento científico através do acesso aberto, mas sim auxiliar os grupos editoriais a transitar para o acesso aberto comercial pela ‘via dourada’.” Isso não somente não aborda a questão do lucro excessivo neste setor, mas também é desejável para as editoras, pois o pagamento recebido antes da publicação resolve a questão da pirataria de artigos científicos.

Uma percepção comum entre cientistas é que somente os países cujas agências de financiamento aderiram ao Plano S seriam diretamente atingidos. Mas nós nos perguntamos como o Plano S afetará os cientistas brasileiros. Grande parte das revistas científicas internacionais ainda não é publicada na ‘via dourada’. No entanto, um dos itens previstos pelo Plano S propõe a migração destas revistas para o modelo exclusivo de ‘via dourada’ até 31 de dezembro de 2024. Isso significa que, a partir de 2025, a maior parte das revistas onde os cientistas do mundo todo publicam passará a cobrar APCs dos autores. Prevemos, portanto, que, até o final de 2024, haverá poucos periódicos internacionais reputáveis com preços acessíveis para publicação por parte de autores brasileiros.

É verdade que o Plano S prevê a concessão de descontos parciais e totais dessas taxas, dependendo da nacionalidade do autor. Por exemplo, o plano descreve que autores de países de baixa renda não precisam pagar APC, enquanto, para aqueles de países de renda média, haveria descontos parciais. No entanto, é necessário que os autores solicitem às revistas o desconto, o que invariavelmente envolve um trâmite demorado e incerto quanto ao valor final do desconto. No caso do Brasil e de outros países de renda média-alta (por parâmetro do Banco Mundial, que é seguido pelo Plano S), não há previsão da concessão de descontos de APCs. De fato, um estudo recente observou que a maior parte dos artigos publicados em periódicos de acesso aberto foi escrita por autores de países de alta renda, enquanto nenhum dos 37 mil artigos analisados foi escrito por autores de países de baixa renda. Isso mostra claramente que o impacto do Plano S é global e que está fazendo uma divisão da produção da ciência entre aqueles que podem pagar para publicar (países de alta renda) daqueles que não podem (todos os outros países).


O IMPACTO DO PLANO S É GLOBAL (…) FAZENDO UMA DIVISÃO DA PRODUÇÃO DA CIÊNCIA ENTRE AQUELES QUE PODEM PAGAR PARA PUBLICAR (PAÍSES DE ALTA RENDA) DAQUELES QUE NÃO PODEM (TODOS OS OUTROS PAÍSES)

O acesso aberto e a ciência brasileira

Qual seria o custo estimado se toda a produção científica brasileira fosse publicada em periódicos ‘via dourada’? O Brasil publica aproximadamente 56 mil artigos científicos por ano em todas as áreas do conhecimento. Se considerarmos o valor médio de APC de R$ 10, 3 mil por artigo, chegaremos a um valor em torno de R$ 576 milhões. Com o portal Periódicos Capes, como já foi dito acima, foram gastos R$ 323 milhões em 2020. Portanto, se as agências de financiamento à pesquisa aderissem ao Plano S, o Brasil gastaria 57% mais recursos para prover o acesso aberto em comparação ao que gasta atualmente com o portal do Capes.

Mas aqui cabe uma ponderação: cerca de 60% dos artigos publicados pelo Brasil já são disponibilizados em revistas de acesso aberto. Estamos pagando duas vezes para tornar público os artigos científicos? Sim, mas a alternativa do acesso aberto, apesar de interessante pela disponibilidade ampla do conhecimento, tem um custo para os cientistas de diversos países que é impeditivo. Esta alternativa também coloca o pagamento nas mãos de pesquisadores individuais, o que diminui o poder de barganha por preços justos. De fato, um levantamento feito pela Universidade Ottawa, no Canadá, em 2021 mostrou que os valores de APC das revistas de acesso aberto e de alta visibilidade aumentaram mais de 70% acima da inflação acumulada nos Estados Unidos nos últimos 10 anos. A desigualdade gerada pelo Plano S é saudável para a ciência? Temos a certeza de que não.

 

O que nos resta fazer?

Infelizmente, ainda não existe uma resposta resolutiva para essa pergunta, uma vez que envolve a articulação da comunidade científica brasileira juntamente com as sociedades científicas, revistas e agências de fomento para que uma solução seja encontrada. Sem dúvida, o mercado do acesso aberto está operando sem qualquer tipo de controle, e isso explica por que algumas revistas estão cobrando taxas abusivas. O que nós sabemos é que a cultura de publicação, certamente, vai mudar pela impossibilidade de a comunidade científica brasileira arcar com os custos elevadíssimos das revistas de acesso aberto pela ‘via dourada’ a partir de 2025. Para evitar que a ‘via dourada’ seja de mão única para os cofres dos grandes grupos editoriais científicos, precisamos nos articular e clamar por um mercado editorial científico verdadeiramente inclusivo.


SEM DÚVIDA, O MERCADO DO ACESSO ABERTO ESTÁ OPERANDO SEM QUALQUER TIPO DE CONTROLE, E ISSO EXPLICA POR QUE ALGUMAS REVISTAS ESTÃO COBRANDO TAXAS ABUSIVAS

Marcus F. Oliveira
Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Alicia Kowaltowski
Instituto de Química
Universidade de São Paulo

Ariel M. Silber
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade de São Paulo

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