De 2007 a 2010, os índios xavantes da aldeia Pimentel Barbosa, no Mato Grosso, atearam fogo a cerca de 274 hectares de cerrado, o equivalente a 83% da reserva federal em que vivem. A maioria das queimadas é provocada intencionalmente para caçar animais que, acuados com as labaredas, se dispersam e caem nas mãos dos caçadores indígenas.
A informação sem contexto pode parecer chocante e antiecológica, mas pesquisadores garantem que a prática de queimar grandes áreas de cerrado – adotada por nativos há séculos – é benéfica para o bioma e seus moradores.
Os xavantes, bem como os caiapós, os crahôs e os canelas, usam o fogo para tratar a terra de plantio, para rituais e para promover a ‘caçada de fogo’. Nesse evento, realizado pelo menos uma vez por ano, indígenas liderados pelos mais velhos da tribo ateiam fogo a grandes áreas de forma controlada e estratégica. Formam um grande círculo de fogo, que pode se estender por centenas de hectares, e aguardam os animais em fuga. A caça é apresentada em cerimônias como casamentos e ritos de passagem para a vida adulta.
Veja como são feitas as caçadas de fogo
De acordo com estudos recentes, essa tradição cultural não só é inofensiva, como também promove a proteção da vegetação e, por consequência, da fauna. Análises conduzidas por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre imagens de satélite da aldeia Pimentel Barbosa registradas nas últimas quatro décadas mostram que, apesar das queimadas constantes, a terra indígena mantém-se coberta de vegetação e mais bem conservada que a região ao redor, ocupada por fazendeiros. Enquanto a área desmatada na aldeia se manteve estável em 0,6% entre 1973 e 2010, o desmatamento em seu entorno aumentou de 1,5% para 26% durante igual período.
As imagens de satélite também revelam que, a partir de 2000, o desmatamento na terra indígena caiu 68%. O número se explica pelas incorporações de latifúndios devastados que passaram a ser dos índios a partir da década de 1980 e foram recuperados.
“Ao analisar os dados, observamos que dentro da terra indígena não existe devastação ambiental”, afirma um dos envolvidos no estudo, o biólogo e antropólogo Carlos Coimbra Jr. “As evidências apontam muito fortemente que a estratégia xavante de manejar o ambiente para a própria sobrevivência é muito mais compatível com uma preservação de longa duração que as estratégias de tomada de áreas de cerrado por fazendeiros. Fica claro que a caçada de fogo promove a preservação.”
Pesquisas dos últimos 20 anos demonstram que, de fato, o fogo pode ter um papel protetor da vegetação em paisagens campestres e de savana, como a maior parte do cerrado brasileiro. A bióloga Vânia Pivello, da Universidade de São Paulo (USP), que estuda a ação do fogo sobre a vegetação, explica que as plantas do cerrado convivem com as chamas, provocadas por raios e por humanos, há milênios.
Assim, o bioma se adaptou às queimadas. As árvores têm troncos grossos resistentes ao calor e muitos frutos têm invólucros que protegem as sementes de altas temperaturas.
Benéfico e necessário
“Em certas paisagens como as florestas tropicais – por exemplo, a Amazônia –, o fogo é extremamente prejudicial. Mas há vegetações, como a do cerrado, que precisam do fogo para cumprir seu ciclo biológico (promovendo a floração, a produção de frutos e a liberação das sementes) e, por consequência, manter os animais que se alimentam dessas plantas”, aponta. “O fogo não é só benéfico, como necessário para o cerrado.”
Por ficar muito seca na época da estiagem, a vegetação do cerrado queima com facilidade – não é à toa que a região é campeã de ocorrências de incêndios florestais do país, geralmente iniciados por raios ou queimadas ilegais que saem de controle. Por mais estranho que pareça, para evitar que esses incêndios se alastrem, o melhor aliado é o próprio fogo.
Experiências conduzidas por Pivello e colegas mostram que queimadas controladas previnem o avanço de incêndios ao consumir o excesso de matéria orgânica seca acumulada, um combustível poderoso que só espera por uma centelha para deflagrar calamidades. “O fogo pode ser um importante instrumento de manejo da vegetação”, diz a pesquisadora. “Áreas intencionalmente queimadas em padrão de mosaico funcionam como barreiras que impedem a expansão de incêndios.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ
Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
A pesquisa da Fiocruz mostra que os índios xavantes de Pimentel Barbosa atearam fogo a cerca de 274 hectares de sua terra indígena entre 2007 e 2010, e não 132 mil hectares em sete anos, como informou a primeira versão desta reportagem. (27/06/2014)