Um dos maiores enigmas da paleontologia é a origem dos pterossauros, grupo de répteis alados que foram os primeiros vertebrados a desenvolverem o voo ativo. As formas mais antigas no registro geológico datam de camadas formadas em torno de 220 milhões de anos atrás, faixa de tempo chamada de período Triássico. Até hoje foram poucos os pterossauros triássicos encontrados, principalmente em depósitos da Itália, Áustria e Groenlândia. Alguns fragmentos também provêm dos Estados Unidos.
Recentemente, foi encontrada uma nova espécie triássica na Argentina, que deveria ser a segunda da América do Sul. A primeira, brasileira, que recebeu o nome de Faxinalipterus minimus, havia sido descrita em 2010 com base em dois exemplares. Até que um novo estudo mostrou algo bem diferente. E, de quebra, revelou a existência de uma nova espécie…
Quando o paleontólogo argentino José Fernando Bonaparte, um dos principais estudiosos de répteis fósseis da América do Sul, ouviu do padre brasileiro Daniel Cargnin – religioso encantado por fósseis – que a região de Faxinal do Soturno, no Rio Grande do Sul, era propícia para novos achados, não perdeu tempo e foi para o local, juntamente com pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em uma das escavações, realizada em 2002, eles encontraram, no sítio fossilífero Linha São Luiz, diversos restos ósseos de pequenas dimensões e muito delicados, incluindo um exemplar com alguns ossos alongados, porém sem crânio preservado. Em 2005, outra expedição encontrou na região parte de um ramo maxilar com dentes bem espaçados, lembrando a configuração de alguns pterossauros. Espécies desses répteis voadores do período Triássico já haviam sido descritas em outras partes do mundo, mas nunca no Brasil, onde eram conhecidos apenas pterossauros do período Cretáceo, sendo os mais antigos encontrados em rochas de 115 milhões de anos da Formação Crato, na Bacia do Araripe (Ceará).
Alguns anos depois, em 2010, Bonaparte e colegas da UFRGS descreveram os dois exemplares como pertencentes a um pterossauro, atribuindo-os a uma mesma espécie, que recebeu o nome de Faxinalipterus minimus.
Pterossauros são o meu objeto de pesquisa desde sempre e a descoberta de uma dessas espécies em depósitos triássicos no Brasil era algo extraordinário. Na primeira oportunidade em que pude examinar o exemplar, ao contrário do que imaginei, não consegui encontrar nenhuma característica no esqueleto que fosse exclusiva de um réptil voador. Não havia falanges de grande comprimento configurando asas, tampouco o osso que havia sido atribuído ao antebraço parecia ser de pterossauro. Também havia questões sobre o segundo exemplar, a maxila. A região dentária deveria ter sido mais bem preparada para permitir uma identificação mais segura quanto ao número de dentes. Porém, o mais intrigante era o fato de que, além de nenhum dos dois materiais se encaixar na anatomia de um pterossauro, era totalmente incerto que representassem uma mesma espécie. Pareciam representar duas espécies distintas, e ambas não eram répteis alados.
Então, junto com outros pesquisadores de diferentes universidades, começamos a reestudar o material. No caso do primeiro exemplar, composto por ossos do braço e das pernas, nos quais a espécie Faxinalipterus minimus foi baseada, o novo estudo revelou se tratar de um réptil classificado no grupo Lagerpetidae. Recentemente, foi apontado que os lagerpetídeos têm relação próxima com os pterossauros e, com estes, compõem a linhagem Pterosauromorpha. Mas lagerpetídeos e pterossauros seguiram caminhos evolutivos distintos.
Na maxila, resolvemos utilizar a tomografia para ter acesso às áreas recobertas por rocha sedimentar. Conforme havíamos suspeitado, os dentes não eram, de fato, espaçados, sendo mais numerosos do que foi evidenciado pelos alvéolos (local onde se insere o dente). Os poucos preservados são cônicos, diferindo do padrão dos dentes mais largos e com muitas pontas típicos dos pterossauros triássicos. Após a tomografia, restava saber a qual animal pertenceria a maxila.
Foi aí que um terceiro espécime entrou na história. O Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (Cappa), da Universidade Federal de Santa Maria, tem feito coletas sistemáticas no afloramento Linha São Luiz. Ao se deparar com a tomografia da maxila, o paleontólogo Rodrigo Müller e outros colegas do Cappa imediatamente reconheceram sua semelhança com a maxila presente em um crânio mais completo que eles estavam estudando.
Assim, unimos esforços e, com base no novo espécime e na maxila antes atribuída a Faxinalipterus, conseguimos estabelecer uma nova espécie de réptil, que recebeu o nome de Maehary bonapartei. Com isso, fizemos uma justa homenagem ao Dr. Bonaparte, falecido em 2020, pelas suas importantes contribuições na pesquisa de fósseis na Argentina e no Brasil, incluindo Faxinalipterus. O nome do gênero vem de uma expressão do povo originário Guarani-Kaiowa, ma’ehary, que significa ‘aquele que olha para o céu’, em referência à posição da nova espécie na linha evolutiva dos répteis, como o mais basal membro de Pterosauromorpha. Ou seja, Maehary está na base do grupo que deu origem aos pterossauros, porém ainda não havia desenvolvido as características anatômicas essenciais para se tornar um réptil alado.
Esse estudo, que foi publicado em destaque na revista PeerJ, demonstra como, às vezes, é difícil classificar esses répteis de pequeno porte que viveram no Triássico em terras onde hoje está o Rio Grande do Sul. A estimativa de tamanho para Faxinalipterus é de 30 cm de comprimento e, para Maehary, 40 cm. Por outro lado, a nova pesquisa demonstra que essa região de Faxinal do Soturno reúne fósseis muito importantes e que poderão elucidar (e já estão fazendo isso!) a evolução de vários grupos de répteis triássicos, particularmente contribuindo para o entendimento de quais foram os passos evolutivos que acabaram por transformar pequenas formas reptilianas em pterossauros, animais alados que tanto fascinam as pessoas.
Alexander W. A. Kellner
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Academia Brasileira de Ciências
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