O economista Marcelo Neri estava dando aula na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, quando se deu conta, junto com seus alunos, de que adotar o isolamento social para conter o avanço do coronavírus seria inevitável. “Caiu a ficha de que teríamos que parar. É um mundo novo, há meia hora meu mundo era diferente do que é agora. É uma mudança intensa. Essa epidemia mexe com a coisa mais básica que é o espírito de sobrevivência”. E é da sobrevivência dos brasileiros mais pobres, que, eventualmente, serão os mais impactados pelas consequências econômicas dessa crise sanitária, que o pesquisador e diretor da FGV Social fala nessa entrevista. “Mas é uma crise de saúde, não podemos perder de vista esse foco e custo maior”, destaca ele, que foi ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República de 2013 a 2015.
CIÊNCIA HOJE: Os impactos do coronavírus na economia mundial serão tão devastadores quanto na saúde?
MARCELO NERI: Nada é mais devastador do que a perda de vidas, e as projeções dos epidemiologistas apontam para cenários muito graves. O que torna essa crise complicada também do ponto de vista econômico é a necessidade do distanciamento social, como uma estratégia precária, mas fundamental, de adiar o problema. Isso gera uma parada na economia comparável, talvez, à grande depressão americana. Aquela crise foi profunda e longa, esta talvez seja mais aguda e, se Deus quiser, não vai durar tanto tempo.
CH: Quais os efeitos na economia brasileira?
NERI: Não sabemos a duração dessa crise. Mas a necessidade do distanciamento social faz com que a economia seja desaquecida; as pessoas deixam de gerar renda, param de trabalhar e isso leva a uma consequência econômica e social, no sentido de que os mais pobres talvez percam mais no final das contas. Essa crise é um pouco atípica porque começou na China, mas está se difundindo muito na outra grande economia do mundo, os Estados Unidos, e em países ricos da Europa. No caso do Brasil, isso vem depois de cinco anos muito difíceis de uma grande crise social, principalmente para os pobres. De 2014 a 2019, a renda média do brasileiro caiu cerca de 2%, mas a renda dos 5% maias pobres caiu 39%. Ou seja, o organismo econômico já está debilitado e, quando está começando a apontar para alguma melhora, vem essa nova crise, com consequências difíceis de dimensionar. Tudo isso gera insegurança e incerteza.
CH: No Brasil, os trabalhadores informais, que são mais de 40% da população brasileira ocupada, devem ser os mais impactados. Quem são eles?
NERI: Esses brasileiros na informalidade têm perfis diferentes e estão em dois grandes grupos. São cerca de 18 milhões de empregados pobres, sem carteira, precários, sem direitos trabalhistas, e 24 milhões de pequenos empresários, trabalhadores por conta própria ou pequenos empregadores. São muito diferentes entre si, um é capitalista sem capital, que vive de lucro. Com essa crise, a renda dele não vai para zero, vai para níveis negativos, na maioria das vezes. E o empregado sem carteira tem grande risco de perder o emprego. O que há em comum entre esses dois grupos é o grau de desproteção social.
A boa notícia é que o Brasil tem uma rede de proteção social estabelecida, com capacidade imediata de chegar aos mais pobres, inclusive os informais. Falo aqui do Bolsa Família. Esse programa chega a uma parte importante, ainda que restrita, que são 40 milhões de pessoas, 20% da população brasileira, já chegou a ser 25%. Há também o Cadastro Único, um instrumento desenvolvido entre o governo federal e os municípios que dá origem ao Bolsa Família. Estão no Cadastro Único 27 milhões de famílias, das quais 13 milhões estão também no Bolsa Família. As outras 14 milhões não são tão pobres para estarem no Bolsa Família, mas têm renda abaixo de meio salário mínimo. O Cadastro pode ser usado para levar ajuda, políticas etc. É um fruto baixo que deve ser colhido com consequências importantes para o bem-estar social.
CH: Como avalia as medidas tomadas pelo governo até aqui para reduzir o impacto da pandemia na economia e na vida dos brasileiros mais pobres?
NERI: O governo anuncia pacote, mas, na verdade, a maior parte do dinheiro não é nova de fato. E isso não vai melhorar a saúde da economia, de uma maneira mais permanente. Estão sendo tomadas decisões rápidas, sem levar em consideração os dados, o bom senso. Um exemplo: no Congresso votam, de um dia para o outro, um projeto de renda mínima universal. Isso mostra como o país está nervoso. E a proposta que foi apelidada de coronavoucher, que começou com R$ 200 e foi para R$ 600, parece meio que uma conversa de botequim, um cabo de guerra. Não se pensa, de fato, o que é melhor. Essa crise tem um ambiente muito pesado, mas a gente não pode deixar a nossa racionalidade sucumbir, e o impulso dominar. O aumento da elegibilidade do Benefício de Prestação Continuada (BCP) é um contraexemplo de livro texto do que não fazer numa crise aguda, mas temporária como essa. Aumentar uma despesa permanente por uma situação que não é permanente. E o benefício só será reajustado depois da crise. É um exemplo didático da forma com que a gente está lidando com a situação de forma afoita. Devíamos começar usando o que temos, o Bolsa Família e o Cadastro Único. E não criar um cadastro no meio de uma pandemia. O Brasil tem uma situação fiscal complicada. No passado, quando veio a crise de 2008, adotou medidas fiscais expansionistas permanentes, o que não é indicado. Naquela ocasião se fez muito por muito tempo, mas, talvez, agora estejamos reagindo de forma instável a uma crise cuja duração desconhecemos. Os dois são problemas, tem que escolher um caminho intermediário.
CH: O que mais pode ser feito? E como?
NERI: A extrema pobreza no Brasil subiu 71% de 2014 a 2018. A crise já afetou esse segmento e nada foi feito. Se reajustar o Bolsa família, que está defasado em 18,8% em relação ao que era, vai gastar 0,1% do PIB [Produto Interno Bruto]. Vai gastar muito pouco. Vamos atender esse público do Cadastro Único, mas usando bem essa tecnologia que permite dar mais a quem tem menos. Não pode ter coração duro nem cabeça mole. Temos que usar a ciência, e o Brasil tem muita ciência nessa área de pobreza e desigualdade. Temos plataforma para atacar isso e, em uma crise, tudo é muito urgente. O Brasil, nos últimos cinco anos, esqueceu dos mais pobres e, em uma crise como essa, é preciso reconhecer que eles entram em uma situação ruim e há soluções possíveis. É uma questão política. Há indicadores que mostram que, quanto mais pró-pobre forem as medidas, melhor vai ser o resultado na economia, mais expansionista vai ser o efeito da política. Na página do Centro de Políticas Sociais da FGV, disponibilizaremos pesquisas e informações para auxiliar os gestores de políticas públicas, e mesmo o cidadão comum, a enfrentar essa pandemia.
CH: O que você acha da renda mínima universal?
NERI: Para um país mais desenvolvido, mais igualitário, poderia ser. Mas para o Brasil – e até para os Estados Unidos – não acho solução. O Brasil já tem um gasto púbico muito alto e muita desigualdade. Um exemplo: antes da crise, se você quisesse atacar a pobreza e desse a mesma coisa para cada trabalhador informal – não só os que estão no Cadastro Único – gastaria 36 vezes mais do que se desse para cada um aquilo que falta para sair da linha de pobreza. Ou seja: ia gastar muito mais e atender menos gente. A melhor solução envolve equidade e eficiência. Temos que usar o espírito generoso da renda mínima universal, mas dar mais a quem está precisando mais. Sou entusiasta da ideia de acudir a população, de perceber que o Estado tem um papel fundamental nisso, mas, até pela importância, deve ser feito com programas mais sofisticados.
CH: Com uma política de reduzir gastos públicos, o governo federal se vê diante desse desafio de equilibrar a economia sob o impacto do coronavírus. Isso é possível?
NERI: Além dessa comparação com a grande depressão, outro paralelo que podemos fazer da crise do coronavírus é com a recessão de 2008, que não foi tão grave quanto a de 1929, porque houve formas para mitigar. Um dos pilotos daquela crise foi o presidente do FED (banco central americano), Ben Bernanke, que estudou a vida toda a grande depressão. Era o cara certo no lugar certo. Aqui no Brasil, a gente tem um ministro da Fazenda que é, aparentemente, um sujeito competente, vem da linha de Chicago, mas o script dele é “temos que fazer o ajuste fiscal”, e agora tem que fazer o oposto disso, por boas razões, para mitigar a crise. Vai ser um verdadeiro teste ver como ele se adapta a uma situação que não era o plano dele nem de ninguém. Apesar da crise do coronavírus, não necessariamente vai ser preciso acabar com o teto dos gastos. Por meio de uma declaração do estado de calamidade, de emergência, é possível atender as necessidades, sem derrubar o teto. O que me preocupa mais é a falta de empenho.
CH: A pandemia do coronavírus tende a colocar em xeque a lógica mercadista, pois o Estado vai precisar atuar mais fortemente na crise sanitária e econômica. Como vê isso?
NERI: Globalmente, a ascensão do Donald Trump e de outras lideranças de direita mundo afora foram frutos da crise de 2008. Essa crise, embora fosse basicamente financeira, gerou uma ressaca dessa atitude mais coletiva, de olhar para todos. Só que agora a gente precisa justamente disso. É uma crise global, se houver cooperação entre países, níveis de governo, entre sociedade, setor privado e Estado, os resultados vão ser muito melhores. Os Estados Unidos, que talvez sejam o centro dessa tendência, têm problemas de saúde pública muito sérios, que mostram a fragilidade desse sistema de mercado em lidar com a saúde. Eles têm um sistema de saúde privado, que funciona mal, que desperdiça recursos, que faz lobby etc. Há países com posturas chamadas neoliberais – não gosto muito desse nome – que não são assim. Na Inglaterra, que é parceira dos Estados Unidos, o sistema público de saúde talvez seja o melhor que se conhece e tem semelhanças com o do Brasil. Um parênteses: a gente joga o SUS [Sistema Único de Saúde] no lixo, mas é uma coisa rara e que vai ajudar muito nesse momento. O mercado não vai distribuir coisas importantes para todo mundo que ajudam a parar a propagação da epidemia, isso é papel do Estado. Não é saudável, em um mundo tão polarizado, criar uma oposição entre mercado e Estado. A gente precisa de uma determinante desses dois elementos juntos. No caso do Brasil, o Estado está quebrado e vai ter que usar todas as reservas que ainda tem nessa crise. Não se pode ficar guardando dinheiro quando as pessoas estão morrendo.
CH: O senhor escreveu um artigo para a Ciência Hoje, em 2014, sobre Angus Deaton, Nobel de Economia. Agora ele está lançando, com Anne Case, o livro Deaths of despair and the future of capitalismo (Mortes de desespero e o futuro do capitalismo, em tradução livre), que mostra a redução da expectativa de vida nos Estados Unidos provocada por mortes precoces por alcoolismo, suicídio, drogas. Pode avaliar se isso se acentua com a crise econômica que se seguirá à pandemia do coronavírus?
NERI: O livro mostra como um país rico se vê diante dessa crise de saúde. E lá quem está sofrendo essas mortes de desespero não são os negros nem os hispânicos americanos. São brancos americanos que estão morrendo por uma epidemia de opioides, suicídios, alcoolismo… É um problema de saúde pública de outra natureza, mas mostra as consequências dessa sociedade sem regulação, sem um Estado fazendo bem o que pode fazer na área de saúde. Isso mostra bem como o espírito científico é necessário nessa hora. Buscar os problemas onde eles estão, e, às vezes, eles estão em lugares que não imaginamos. Nessa crise de covid-19, não vamos encontrar as repostas no passado; está acontecendo agora e tem sutilezas, tal como na epidemia de opioides nos Estados Unidos. Os mais afetados não são os personagens mais tradicionais. Tem que olhar muito para a cena e captar dados, usar a ciência. Essa crise do novo coronavírus veio por causa de um vírus, só que encontra um terreno fértil para gerar mudanças. O mundo vai ser diferente.
Valquíria Daher
Jornalista
Instituto Ciência Hoje
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