CIÊNCIA HOJE: Há um mito bastante difundido de que a Independência brasileira se deu de forma pacífica e que não houve ‘guerra da Independência’, assim como em outros países das Américas. Pode falar sobre por que e como esse mito foi propagado e sobre os conflitos que marcaram o período?
PATRICIA MARIA ALVES DE MELO: Há uma vasta historiografia que analisa essa questão, que tem muitas dimensões. Vou destacar apenas uma delas: houve a construção de uma determinada ideia de nação pautada por um ideário de que haveria um sentimento latente de nacionalidade, no sentido de pertencimento a determinado lugar. Desse modo, os movimentos pela Independência teriam seguido um caminho pacífico porque iam ao encontro dos mais profundos desejos de liberdade fortalecidos por essa ‘proto-nacionalidade’, vamos dizer assim, de modo bem simplificado. Estamos diante de uma construção narrativa, claro.
A ideia de pertencimento a uma nação é um processo de construção de determinados ideais políticos, de certo passado e de construção de futuro. E o que tínhamos eram ‘muitas colônias’ na América portuguesa. Havia uma ideia de pertencimento a uma coroa, de vassalagem com um trono. A ideia de uma nação não estava presente nessas áreas coloniais. Ou seja: não existia um Brasil colonial que compartilhava um desejo de independência dessa metrópole, esse ideal de nação que estava sendo proposto.
CH: Complementando a pergunta anterior, o que foi a Independência na Corte e nos estados de Norte e Nordeste?
PMAM: Como já foi dito, é importante não esquecer que não existia um ‘Brasil’ colonial como uma unidade territorial e administrativa de norte a sul que se torna um ‘Brasil independente’ em 1822. Existiam dois estados administrados de modo independente e sem que houvesse, entre eles, qualquer hierarquia administrativa. Refiro-me ao Estado do Grão-Pará e Rio Negro e o Estado do Brasil. Dito corretamente, o espaço que hoje conhecemos como Amazônia ficou mais de 200 anos existindo administrativamente de modo separado do ‘Brasil’. Só para ter ideia, esse Estado chegou a se estender do Ceará ao Amazonas, traduzindo em unidades administrativas do tempo presente. O que chamamos de Norte (e também Nordeste) é uma elaboração do século 19. Isso ajuda a entender as razões pelas quais a Independência – proclamada no Estado do Brasil, é bom sublinhar – tivesse que ser construída politicamente em outras áreas coloniais da América portuguesa. Vou me restringir aqui ao caso do Grão-Pará, que experimentou sangrentas lutas políticas na conjuntura de 1822, porque quem defendia a Independência era a elite nascida no Pará, que via isso como forma de ascender a postos administrativos do Estado ocupados por portugueses que se reportavam diretamente a Lisboa. Essas elites locais aderiram ao movimento político desencadeado no Brasil como expressão e desdobramento dessas tensões internas, mas não houve o desdobramento que esperavam. O modo como isso se deu gerou fortes insatisfações e contradições. O Pará só aderiu à Independência em agosto de 1823.
CH: A Independência foi decretada em 1822, e só 66 anos depois houve a abolição da escravatura. Qual o papel das pessoas escravizadas ou daqueles recém-libertados no processo de Independência?
PMAM: Aqui também está se constituindo uma vigorosa historiografia interessada em lançar luz na participação de povos indígenas e pessoas negras – escravizadas ou não – nesses processos. Esses trabalhos têm se empenhado em revelar dimensões das lutas pela existência desses grupos sócio-étnicos e seu protagonismo na luta por direitos nessa nova conjuntura. Exemplos importantes vêm recuperando dimensões dessa participação em movimentos sociais que antecederam 1822 e que, entre suas pautas, incluíam a separação de Portugal, como, por exemplo, a Revolução Pernambucana de 1817 e a Conjuração Baiana de 1798, que, além disso, defendia o fim da escravidão. Como indicam muitos trabalhos acadêmicos, havia uma participação expressiva de negros em grande parte dos movimentos sociais daquele momento, reivindicando direitos e melhores condições de existência. Tais trabalhos também sublinham a existência de um esforço de apagamento dessa memória das lutas de negros e de indígenas.
CH: Nos países da América hispânica, foi grande a participação dos povos indígenas na luta contra a metrópole. No Brasil, a população indígena seguia sendo exterminada, sendo reduzida, segundo o primeiro censo populacional, a cerca de 300 mil pessoas. Essa questão era discutida à época? Qual a visão de historiadores sobre essa questão e também sobre a escravidão indígena?
PMAM: A despeito do intenso crescimento acadêmico das últimas décadas, a história dos povos indígenas no Brasil ainda demanda muito esforço de pesquisa. Ainda persiste muito desconhecimento sobre suas experiências históricas e certo silenciamento sobre sua agência e protagonismo. Pensar sobre o contexto de 1822 e os povos nativos nos ajuda a refletir sobre essas questões. A experiência dos indígenas no Ceará em 1821 ilumina, de modo consistente, uma das possibilidades de seu protagonismo político. A pesquisa do historiador João Paulo Peixoto Costa, do Instituto Federal do Piauí, demonstra que o levante indígena ocorrido em Maranguape (CE) revelou que o que estava em jogo não era apenas uma questão de aceitar ou não a Independência, mas, sim, o que isso representava de mudança nas suas vidas, e o receio de se verem reconduzidos à escravidão era fundado nas suas próprias experiências na região. Diz Costa que “o antilusitanismo indígena nasceu de sua luta pela liberdade, pela posse de seus territórios e contra a violência sofrida neste contexto”.
Por outro lado, há que se indicar as alterações legais com relação aos povos indígenas que se configuraram no pós-independência. Uma das questões candentes dizia respeito à sua cidadania, tema de intensos debates na Assembleia Nacional Constituinte de 1823. Há que se pontuar que a condição primeira da cidadania dos indígenas era, exatamente, deixar de ser indígena. ‘Civilizar-se’, no caso dos índios, era condição essencial para tornar-se membro útil do Império, mas também era uma espécie de armadilha. Não foram poucos os casos em que, já ‘misturados’, grupos indígenas viram seus direitos à terra retirados pelo Estado imperial exatamente porque já não eram mais considerados índios. Isso, claro, é uma falácia, porque ninguém deixa de ser índio porque passa a usar roupas ou a lançar mão de instrumentos e modos de vida dos brancos, mas essa era a visão do século 19.
CH: Acredita que essa questão se reflete nos tempos atuais?
PMAM: Sim, essa questão não deixa de ter eco no presente. Escrevi um texto no UOL em que falei sobre isso, quando tratei do Acampamento Terra Livre. Ao não atender a esse estereótipo do que significa ser índio, as demandas desses povos passam a ser desqualificadas e abre-se a possibilidade de ocuparem as suas terras, de tirarem seus direitos. Os silêncios da legislação de 1824 mostram a veia conservadora dessa nação que nasce em 1822, uma nação que opta pela exclusão sistemática das populações nativas e da população negra, escravizada ou não.
CH: Quais são as novas abordagens e novos olhares da pesquisa histórica brasileira sobre a Independência? E como isso se reflete sobre a celebração do bicentenário da Independência?
PMAM: É uma pergunta difícil de ser respondida de modo sintético. Há uma notável expansão da historiografia brasileira sobre o tema, e isso se deve muito à expansão da pós-graduação no país. Também há uma ampliação importante de fontes, temas e problemas de investigação. Não há como deixar de notar que há uma ampliação importante do tipo de perguntas que são feitas, e essas novas indagações ajudam a reposicionar perspectivas analíticas, questionar narrativas consolidadas e rever paradigmas. Essas e tantas outras questões se refletem na revisita à efeméride que é o bicentenário. Uma pergunta recorrente me parece ser a que está relacionada à diversidade dos sujeitos históricos na construção desse processo de Independência.
CH: Qual uso político pode ser feito do bicentenário da Independência? Como foram as celebrações dos 150 anos em plena ditadura militar?
PMAM: Como disse, esse é um evento que foi tratado como fundante da nação e, nesse sentido, foram inúmeros seus usos políticos. Durante a ditadura, as celebrações do sesquicentenário nos oferecem um quadro relevante para analisar tais possibilidades. À época, as comemorações foram pensadas para reiterar a ditadura como um consenso na sociedade brasileira, como um produto social. As comemorações procuraram destacar o caráter conservador da sociedade, uma predominância de valores não democráticos. Por sua vez, ao contrário do que se poderia imaginar, até o momento as ações do governo federal em torno das comemorações do bicentenário têm ficado aquém no sentido de usar politicamente a efeméride para reiterar esses valores conservadores e não democráticos que pautam a ação do Estado brasileiro neste momento. Pode ser que ganhem alguma velocidade nos próximos meses, pois não é algo que se perca em um governo conservador que flerta com o fascismo.
Por outro lado, é importante dizer também que efemérides ajudam a criar e mobilizar espaços de debate. São, em certa medida, uma boa oportunidade para pautar novos problemas e novas abordagens. Estamos diante desse movimento agora mesmo. Uma oportunidade de abrir uma janela de comunicação maior, mostrando o que há de novo, o que está sendo revisto, repaginado e revisitado sobre a Independência.
CH: A maior parte dos brasileiros aprendeu a entender a Independência do país como um ato heroico selado por um grito de “independência ou morte”. Duzentos anos depois, a historiografia trata a Independência como um processo longo e conturbado. Essa visão atualizada chega às salas de aula do ensino básico?
PMAM: Há um esforço permanente nesse sentido e não só para o tema da Independência. Contudo, essa não é tarefa simples. Estamos falando de um processo sistemático de formação de profissionais de história e da criação – e manutenção – de condições de trabalho que incluam, entre outras variáveis, o acesso a uma boa produção didática. Essa é uma questão que demanda atenção dos poderes públicos para garantir educação de qualidade, e não é apenas uma tarefa dos profissionais de história. Importante dizer que, além da formação e da produção didática destinada à educação básica, há importantes iniciativas de letramento histórico na área que chamamos de história pública que podem lançar mão de diferentes formatos. Alguns exemplos: a coluna ‘Nossas Histórias’, uma iniciativa da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, em parceria com o Portal Geledés e Cultne TV; e o Projeto Passados Presentes, uma ação do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF [Universidade Federal Fluminense] e do Núcleo de Memória e Documentação da Unirio [Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro].
Por Valquíria Daher
Jornalista, Instituto Ciência Hoje
Três sapos e três rãs se encontram alinhados em um ‘tabuleiro’ de uma só linha com sete casas. Para se movimentar, eles podem deslizar para um mesmo lado ou pular um por cima do outro. Será possível trocar os grupos de anfíbios de lugar, invertendo as posições?
A realização de estudos em que voluntários são infectados propositalmente com um agente infeccioso selecionado e mantido em laboratório pode acelerar e reduzir os custos de testes de candidatos vacinais e a solução de problemas de saúde no Brasil
O trabalho com coleções científicas despertou o interesse da bióloga e historiadora da ciência Magali Romero Sá, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, por naturalistas, viagens científicas e pela formação de museus de ciências, fazendo surgir um novo campo de interesse
Uma ferramenta computacional poderosa está na linha de frente de combate a novos vírus, como o causador da atual pandemia. Desenvolvido por brasileiros, modelo com base nessa técnica revelou qual o mais provável hospedeiro natural para o agente causador da covid-19
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a esfera de Rufus, uma potencial bomba nuclear que nunca foi detonada, mas usada para pesquisa, fez duas vítimas fatais no laboratório de Los Álamos (EUA). Usada sem sucesso em testes nucleares, ela foi finalmente derretida
Relatório da Academia Brasileira de Ciências (ABC) dimensiona gravidade de fenômeno acentuado na pandemia e defende liderança de pesquisadores, em conjunto com educação científica e midiática, como armas cruciais de prevenção e combate.
Discussão sobre transferência dos terrenos de marinha a estados, municípios e particulares acende alerta entre ambientalistas, que apontam ameaça à preservação de ecossistemas cruciais para um mundo em emergência climática
Para psicóloga integrante da Câmara de Políticas Raciais e da Comissão de Heteroidentificação da UFRJ, Luciene Lacerda, episódios que colocaram em xeque a atuação das bancas fortalecem a certeza do quanto as políticas afirmativas para a população negra são necessárias
Pesquisador da Fiocruz e da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Julio Croda diz que, para combater as epidemias recorrentes no país, é preciso adotar rapidamente as novas tecnologias de controle do Aedes aegypti e explica a importância do início da vacinação no SUS
Para o historiador Carlos Fico, da UFRJ, o golpe de 1964, ocorrido há 60 anos, deve ser mais estudado, assim como a colaboração de civis com a ditadura e o eterno fantasma da interferência das Forças Armadas na democracia, que voltou a assombrar o país nos atos de 8/1
Diretora da Anistia Internacional Brasil (AIB), Jurema Werneck destaca que preservar as vidas e a dignidade de todas as pessoas ainda é um grande desafio, apesar dos avanços obtidos com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948
Um dos principais nomes da IA generativa, o cientista da computação Hao Li vislumbra um futuro em que a tecnologia será capaz de criar humanos digitais, reconstituir o passado e construir metrópoles em tempo real. Mas ele reconhece dilemas éticos: ‘O importante é as pessoas saberem o que é possível’
O pediatra infectologista Renato Kfouri destaca política vacinal brasileira como referência em saúde pública, mas alerta que, para seguir avançando, é preciso melhorar a comunicação com o público, a logística de postos de saúde e a capacitação de profissionais
Para Daniel Cara, professor e pesquisador da USP, reforma é descontextualizada do universo escolar e das realidades das redes públicas, busca ‘desprofissionalizar’ docentes, impõe uma educação desprovida de ciência e não proporciona o direito de escolha aos estudantes, alardeado pelos defensores do NEM
Cofundador da recém-lançada Pride in Microbiology Network, Bruno Francesco Rodrigues de Oliveira afirma que a comunidade é negligenciada nas áreas de exatas e ciências da natureza e espera que a nova rede ofereça apoio para essas pessoas enfrentarem os desafios cotidianos na academia
Cookie | Duração | Descrição |
---|---|---|
cookielawinfo-checkbox-analytics | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics". |
cookielawinfo-checkbox-functional | 11 months | The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional". |
cookielawinfo-checkbox-necessary | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary". |
cookielawinfo-checkbox-others | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other. |
cookielawinfo-checkbox-performance | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance". |
viewed_cookie_policy | 11 months | The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data. |