No mundo ocidental, os séculos 15 e 16 viram-se marcados por transformações profundas. A centralização política substituiu a fragmentação medieval, o comércio cresceu e deu força à burguesia, o controle da terra se tornou privilégio de alguns, solapando a exploração comunal: os cercamentos ingleses, com seus muros de pedra que confinavam os carneiros e impediam o acesso dos seres humanos, são uma espécie de emblema desse processo.
Até então, a pobreza era considerada natural e, às vezes, associada à santidade. Quem desejasse renunciar às vaidades terrenas começava, quase sempre, por abrir mão de seus bens, como São Francisco de Assis, Santo Inácio de Loiola ou Santa Teresa de Ávila.
O voto de pobreza sempre foi requisito para ingressar na vida religiosa, a tradição cristã rezando ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Cada convento ou mosteiro tinha seus comensais pobres, que ali acorriam para receber a sopa e o pão. Cada aldeia tinha seus mendigos e aleijados, conhecendo-os pelo nome e os socorrendo conforme pudesse.
Mas as coisas mudaram de modo radical. Vastos contingentes de trabalhadores deixaram os campos rumo às cidades e quem nada tinha além da força de trabalho procurou viver dela, muitas vezes sem sucesso. Nas ruas, nas estradas, nos adros das igrejas, os mendigos constituíam multidão.
Juan Luís Vives (1492-1540), grande humanista hispano-flamengo e um pioneiro na reflexão sobre os pobres, não deixou de retratá-los com impiedade, condenando-os por “desavergonhada e inoportunamente” abrirem caminho no interior dos templos, “deformados por suas pústulas, exalando dos corpos um odor insuportável” e distraindo a atenção dos fiéis que assistiam à missa.
Na Roma do papa Sixto V, a situação se tornou tão grave que uma bula papal de 1587 fulminou os vagabundos que erravam como animais pelos lugares públicos, vociferando contra a sorte. Estrangeiros nas vilas e cidades sobre as quais se atiravam, esses pobres em movimento eram vistos como ameaçadores, com seus rostos desconhecidos. Em 1516, o Parlamento de Paris decretou a expulsão dos vagabundos, que dessa forma se deslocariam para outros núcleos urbanos até serem expulsos de novo.
Pobreza e itinerância deixaram assim de ser toleradas pela Igreja e pelos organismos de assistência para se tornar alvo de ações governamentais. Os nascentes Estados europeus foram, sem exceção, ferrenhos opositores dos pobres, procurando transformá-los em indivíduos úteis à República e impedir que pesassem sobre a ‘parte saudável’ da sociedade.
Pobres e vagabundos, pontificaria um jurista francês do século 17, não eram senão o “peso inútil da terra”. Hospícios, casas de trabalho forçado e obras públicas absorveram um número cada vez maior dessas criaturas, obrigando-as a se ocupar em trabalhos manuais, a remar nas galeras do rei – como na França de Luís XIV –, a abrir estradas por toda a Europa, da Holanda calvinista ao Portugal ultracatólico.
Mais da metade dos pobres socorridos em 1541 pela paróquia de Santa Gertrudes, na cidade flamenga de Louvain, eram crianças. Dez anos depois, 60% dos miseráveis de Segóvia eram mulheres, cifra que em Medina del Campo – ambas cidades da Espanha – atingia então os 83%.
A história de João e Maria, abandonados na floresta pelos pais miseráveis e atraídos pela bruxa, sintetiza admiravelmente esse mundo no qual os desvalidos penavam para sobreviver e a pobreza era cada vez mais associada ao desvio e à maldade. Porque muitas das mulheres perseguidas por bruxaria nos séculos 16 e 17 eram viúvas pobres, vistas como improdutivas e desprovidas de qualquer utilidade.
Laura de Mello e Souza
Departamento de História
Universidade de São Paulo
Texto originalmente publicado na CH 294 (julho de 2012).