Português: uma língua que não fala com o pai

Que a língua portuguesa descende do latim, ninguém questiona. O que não se aprende na escola – e muita gente desconhece – é que o português, falado por cerca de 200 milhões de pessoas, é filho também do galego, idioma atualmente restrito a uma população cem vezes menor. Filho mal-agradecido, diga-se de passagem, já que não dá o devido valor ao pai.

Quem explica é o linguista Carlos Alberto Faraco, do Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná, especialista em linguística histórica e filologia românica.

Durante o VII Congresso Brasileiro de Linguística, realizado em Curitiba, ele contou que o galego foi introduzido na região que viria a ser Portugal entre os séculos 9 e 13, antes da consolidação do Reino de Portugal. O galego é a língua nativa da Galícia, região autônoma da Espanha localizada ao norte do país.

Catedral de Santiago da Compostela
Catedral de Santiago da Compostela, capital da comunidade autônoma da Galícia, na Espanha. (foto: Luis Miguel Bugallo Sánchez/ CC BY-SA 3.0)

Com a criação de uma identidade nacional portuguesa a partir do século 13, a língua falada nas terras de Portugal passou a ser considerada própria do país. Ao longo do tempo, passou a receber influência de outros idiomas e a se diferenciar do galego.

Entre os séculos 15 e 16, com a conquista portuguesa de territórios principalmente na América e África, a língua se expandiu mundialmente e hoje é uma das dez mais faladas do mundo.

O galego, por sua vez, ficou restrito à região da Galícia e a algumas colônias de emigrantes espalhadas pela América do Sul, em países como Argentina e Brasil. Os falantes da língua reconhecem o português como uma derivação de seu idioma. Tanto que há uma corrente, chamada reintegracionista, que considera o galego e o português uma coisa só e defende uma norma ortográfica única.

Trecho da obra ‘Cantigas de amigo’
Trecho da obra ‘Cantigas de amigo’, escrito em galego por Martim Codax, jogral que viveu entre a segunda metade do século 13 e começo do século 14 na região da Galícia. (foto: Pierpont Morgan Library, New York)

Na academia, a noção de que a língua de Camões tem parentes na Galícia também é consenso. Então por que entre os falantes de português em geral esse conhecimento é tão pouco difundido?

“Porque a história é sempre contada pelo lado dominante”, responde Faraco. Reflexo dessa herança é o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, onde o galego é ignorado em um dos quadros que ilustra as origens do português.

Faraco defende que a lusofonia, em termos políticos, deve compreender muito mais do que a defesa da língua portuguesa propriamente dita, mas também de idiomas como o galego e o crioulo cabo-verdiano (que tem base lexical portuguesa).

Depois de tanto tempo, será que não está na hora de o filho fazer as pazes com o pai?

Célio Yano

Ciência Hoje On-line/ PR