O médico Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fiocruz e colaborador do IPCC, fala sobre os desafios do acesso à água no Fórum Internacional de Saúde e Meio Ambiente.
Quando se pensa em promover a saúde humana e o equilíbrio ambiental, um elemento é essencial: a água. Estima-se que o simples acesso a esse recurso nos países em desenvolvimento poderia diminuir em pelo menos 25% os casos de diarréia e outras doenças transmitidas por esse meio. Os desafios na busca de um modelo sustentável para a gestão da água foram o tema de uma mesa-redonda no segundo dia do Fórum Internacional de Ecossaúde, realizado em Mérida, no México.
Um dos participantes do debate foi o brasileiro Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Médico de formação, ele coordenou recentemente na equipe do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) o grupo de trabalho que discutiu os impactos da mudança climática na saúde humana.
Ao final do debate, Confalonieri – que faz parte da comissão organizadora do fórum – conversou com a CH On-line sobre os desafios que o Brasil tem pela frente para garantir acesso à água à sua população nas próximas décadas.
Se considerarmos a perspectiva multidisciplinar proposta neste fórum, que enxerga saúde e meio ambiente de forma integrada, qual é o papel da qualidade da água para garantir a saúde humana e do meio ambiente?
A água é absolutamente essencial para tudo, sem ela ninguém consegue viver. A questão com a qual mais lidei no IPCC foram as projeções de mudança na disponibilidade de água devido ao aquecimento global. Veja o caso do Nordeste brasileiro. Há ali aquela chuva sazonal, durante dois meses por ano, e toda a comunidade da agricultura de subsistência depende dela. O ano em que a chuva não vem é problemático – é o ano da seca. Mas o agricultor sabe que, no ano seguinte, a chuva deve aparecer. Mas os modelos feitos pelo CPTEC [Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos] projetam que a região vai se tornar progressivamente mais árida: este ano não tem, no ano que vem também não vai ter, e aí como é que se faz? Há 23 milhões de pessoas vivendo no semi-árido nordestino, uma das regiões semi-áridas mais populosas do mundo. Se se confirmarem as previsões dos modelos teóricos, haverá um problema de falta de água – a região semi-árida vai virar árida, e não será mais possível viver ali.
De pouco adianta então a grande disponibilidade de água doce no Brasil?
Esta é uma garantia regional apenas. Tem água na Amazônia, mas no Nordeste tem pouco. E o que vamos fazer? Transpor o Amazonas para o Nordeste? E a projeção de redução da floresta pode afetar muito o ciclo da água na Amazônia, bem como o degelo dos Andes, de onde vem muito do que corre no rio Amazonas. E se não tiver mais gelo para derreter, como é que fica? A situação é preocupante para o mundo inteiro. A nossa água existe agora: a Amazônia tem a maior bacia hidrográfica do mundo, o rio mais longo, mas daqui a 50 anos, não sei como vai estar.
O senhor citou em sua fala uma projeção do IPCC que aponta que, em 2080, 3 bilhões de pessoas não terão acesso satisfatório à água. Essa perspectiva é reversível?
A projeção do IPCC é uma algo que informa ou deveria informar políticas públicas nacionais e internacionais. Nos próximos anos os modelos vão se aperfeiçoar. Eles têm sempre um grau de incerteza. Mas, à medida que melhores técnicas forem desenvolvidas e mais dados forem acumulados, teremos projeções mais seguras. De qualquer maneira, funciona como um alerta.
Quais devem ser as prioridades das políticas públicas para garantir o acesso à água para toda a população brasileira?
Se considerarmos a questão do clima, fica complicado, porque se trata de um processo global, e não temos controle sobre isso. Isso teria que ser tratado em âmbito internacional. Quanto ao setor de saúde, acho que ele tem que acompanhar a evolução dessas discussões multissetoriais e participar mais dessas projeções. Isso é o que estamos tentando fazer – desenvolver modelos integrados e multissetoriais, que apontem o que vai acontecer daqui a dez anos com o clima e como aquilo afeta o ambiente natural, o ciclo da água, a agricultura, o transporte, a energia e a saúde. Isso só faz sentido se for trabalhado de maneira integrada. A saúde, dentro desse espectro de questões sócio-ambientais e sanitárias, é o último elo da cadeia: uma coisa causa outra, que provoca uma outra, que afeta a saúde. Por isso dependemos dos produtos de outras disciplinas. Um modelo climático era essencial, e até o ano passado não tínhamos isso. E eles ainda precisam melhorar. O cenário climático está projetado para 2070. Dificilmente quem está envolvido com política pública vai pensar em 2070, que está muito distante no tempo – ele quer saber de 2010, 2015, 2020. É importante fazer esses modelos, mas é preciso fazer projeções para décadas mais próximas, para termos uma idéia de como a política ficou urgente em relação a essa questão.
Bernardo Esteves (*)
Ciência Hoje On-line
03/12/2008
(*) O repórter viajou a Mérida financiado pela Federação Mundial dos Jornalistas de Ciência.