Falta fazer o dever de casa
por Ana Paola Amorim
Para contribuir com o processo de democratização, os meios de comunicação têm de ser democráticos. Isso não acontece no Brasil. A mídia nacional é predominantemente comercial, com tímidas inserções de experiências comunitárias e públicas. O controle do espaço comunicativo é oligopolizado. Daí que a representação das vozes é resultado da disputa em um espaço controlado por grupos econômicos que têm perspectiva mercantil. Não há espaço para produções regionalizadas e a produção nacional ainda luta para sobreviver e ser vista. Esse cenário coloca a mídia na contramão dos processos de democratização.
A despeito disso, o povo faz sua parte: nas jornadas (junho, agosto, setembro, janeiro, fevereiro…), nos espaços de participação popular e nas manifestações culturais. Mas nem todos podem ver e nem tudo pode ser visto, pois o acesso à agenda pública é restrito. A concentração de propriedade da mídia privatiza o direito à voz, corrompendo a opinião pública.
Há um impasse que tensiona a relação entre democracia e mídia, e sua solução depende do reconhecimento do estatuto público da comunicação, algo que os grandes empresários de mídia se esforçam para impedir.
A história das comunicações no Brasil tem sido a história do lobby das empresas de comunicação. A opção pelo predomínio comercial no setor vem desde os anos 1930, quando foi definida a exploração privada das concessões de radiodifusão. Não era a única opção: na mesma época, a Inglaterra optava pela exploração pública.
A noção de direitos públicos também não era estranha ao Brasil, pois estava se tornando a base das discussões sobre as políticas de educação, saúde e trabalho. Mas o direito à comunicação e à participação ativa na formação da opinião pública permaneceu preso à fórmula do ‘livre mercado de ideias’ – uma analogia imprópria, já que a comunicação pública democrática não pode ser quantificada como mercadoria.
A Constituição de 1988 incorporou, a duras penas e a despeito de intensas polêmicas, o estatuto público como parâmetro de regulamentação das comunicações. Mas a maior parte do capítulo da comunicação social até hoje não foi regulamentada. Entre os esquecidos está o parágrafo 5º do artigo 220, que proíbe a formação de monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação.
Nesse aspecto, estamos atrasados em relação aos países latino-americanos, a começar pela Argentina, onde foi promulgada, em outubro de 2009, a Lei de Meios, que declarou o setor audiovisual “de interesse público”, abriu espaço para mídias comunitárias e de serviço público e encerrou o monopólio do grupo Clarín. Na Inglaterra, o inquérito presidido em 2011 e 2012 pelo juiz Brian Leveson para apurar denúncias de atividades criminosas de jornais do grupo do megaempresário Rupert Murdoch apontou a necessidade de reformular a regulamentação da imprensa.
Também a União Europeia, após estudos sobre o setor, produziu um extenso documento: ‘Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia europeia’. Esse relatório defende como essenciais esses dois princípios, liberdade e pluralismo, e traz propostas como, entre outras, educação nas escolas para a leitura da mídia, total neutralidade da internet, apoio financeiro a mídias alternativas, identificação dos responsáveis por calúnias e garantias de resposta e retratação.
O Brasil não pode ficar de fora desse debate. Há que se discutir uma “nova lei para um novo tempo”, como defende a campanha encabeçada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Essa campanha reuniu entidades da sociedade civil, professores, especialistas e pesquisadores da área para elaborar um projeto de lei de iniciativa popular para a mídia democrática – em processo de coleta de assinaturas para ser encaminhado ao Congresso Nacional.
Franklin Martins, ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, tem dito que o texto constitucional de 1988 é horizonte da luta pela democratização da comunicação. É justamente o que reivindica o FNDC: “Nada além da Constituição”. O projeto visa à regulamentação dos artigos que definem o estatuto público da comunicação e pretende abrir caminho para que o país tenha um sistema de mídia capaz de garantir a formação de uma opinião pública democrática.
Ana Paola Amorim é jornalista, cientista política e professora de jornalismo da Universidade Fumec/Minas Gerais
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Asimetrias e desigualdades
por Ângela Cristina Salgueiro Marques
No final do segundo volume do livro Teoria da ação comunicativa, o filósofo alemão Jürgen Habermas desenvolve o argumento de que os meios de comunicação desempenham um papel dúbio na configuração dos processos democráticos: se, por um lado, eles tornam públicos os discursos de atores localizados em diferentes arenas comunicativas, libertando as informações de seus contextos de origem e tornando-as acessíveis a uma vasta maioria, por outro lado, o discurso produzido pelos profissionais da mídia é alimentado por atores em busca de acesso e influência.
Apesar das assimetrias de poder associadas à ação dos agentes midiáticos junto às suas fontes e ao código interno de seleção e enquadramento dos acontecimentos e falas públicas, Habermas atribui aos meios de comunicação um lugar central no processo de organização, divulgação e espraiamento dos debates que ocorrem nas distintas esferas públicas, compostas por agentes institucionais e agentes informais. Os meios de comunicação, porém, podem se tornar obstáculos para a promoção de processos democráticos quando hierarquizam e priorizam discursos, para privilegiar interesses de grupos e indivíduos.
De modo geral, grande parte da sociedade civil (organizada ou não) tem sua fala excluída do espaço de circulação de pontos de vista e argumentos representado pela mídia.
É possível observar como isso acontece nos textos midiáticos, por meio das seguintes características: a) quando o texto se refere a determinado segmento social usando a terceira pessoa, sem se preocupar em trazer as falas dos interessados; b) quando tal segmento raramente (ou nunca) aparece como grupo ao qual os entrevistados ‘institucionais’ se remetem (revelando que não o veem como interlocutor); c) quando há sinais de que esses entrevistados acreditam que prestam contas a esse segmento, tratando seus integrantes como objetos de um debate ou como meros espectadores do processo decisório; e d) quando integrantes desse segmento são convidados a falar, mas percebe-se que raramente é o conteúdo de sua fala que interessa, e sim a possibilidade de esta ilustrar um ponto de vista ou transmitir uma ‘lição’, geralmente ligada à superação de dificuldades pelo mérito individual.
Os veículos não são despidos de ideologias e preferências institucionais internas, e se posicionam politicamente diante dos acontecimentos e polêmicas. Tal fato muito influencia na seletividade das fontes, na inclusão das perspectivas sociais e na escolha dos temas que terão destaque nos enquadramentos.
É preciso, portanto, não perder de vista o fato de que nem todos os segmentos sociais conseguem ter seus argumentos ou suas demandas de validade expostos na mídia. Sobretudo quando a produção de enquadramentos está associada ao discurso de agentes institucionais poderosos, que estão em contínua disputa para atribuir significados aos eventos correntes.
Os meios de comunicação articulam o conteúdo discursivo que circula nos espaços de interação cotidiana (salientando temas que os profissionais julgam relevantes), permitem a aproximação ou contraposição de perspectivas e promovem a prestação de contas entre vários interlocutores.
Entretanto, nem sempre eles são benéficos aos processos argumentativos. Os filtros e constrangimentos que impõem, ao hierarquizar conteúdos e fontes, por exemplo, produzem invisibilidades que podem ser desastrosas ao processo de construção da opinião pública via debate e reflexão coletiva.
Fluxos comunicativos que surgem na periferia desse processo, sob a forma de conversações informais, raramente têm acesso à arena dos meios de comunicação e, às vezes, sequer demonstram ter sido gerados com a intenção de fazê-lo. Não há como desconsiderar que existem assimetrias no espaço midiático, ou seja, são desiguais as chances de intervenção dos diferentes públicos na produção, validação, regulação e apresentação de mensagens veiculadas.
Ângela Cristina Salgueiro Marques é professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais
Texto originalmente publicado no sobreCultura 15.